SNS está a transformar-se no “SNS inglês” e “debaixo do
nosso nariz”
João Oliveira O presidente do IPO de Lisboa é um acérrimo
defensor do Serviço Nacional de Saúde. “Ainda bem que existe porque tratar de
uma pessoa não é coisa que se faça em lojas separadas”, diz
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) inglês “tem o nome, mas o
mecanismo em si, a prestação, já não é pública, uma enorme parte é privada”.
Hoje é “uma grande central de compras”, enfatiza o presidente do conselho de
admnistração do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, João
Oliveira, que alerta para que já começa a acontecer o mesmo em Portugal. O tratamento do cancro mudou muito nos
últimos anos? Mudou, mas a pedra angular do tratamento dos tumores sólidos
continua a ser a cirurgia. Actualmente, há uma série de tecnologias que
permitem cirurgias mais conservadoras. Por exemplo, antes, nos tumores do
recto, tinha que se tirar o ânus. A combinação da cirurgia com a quimioterapia
e a radioterapia permitiu uma taxa de curas alta. De há 20 anos para cá, mudou
tudo com a cirurgia e com a combinação da cirurgia com os outros meios. Estes
são grandes avanços de que se fala pouco. Só se fala de medicamentos… Por que é
que isso acontece? Por causa do lobby da indústria farmacêutica? Temos uma
focalização nos medicamentos e é certo que melhoraram muito a vida das pessoas.
No cancro, as leucemias agudas a partir dos anos 60 passaram a tratar-se e, nas
crianças, a taxa de cura é muito alta. Isso aconteceu graças aos medicamentos.
A leucemia mielóide, quando comecei, era uma doença crónica e 90 a 95% das
pessoas estavam mortas cinco anos depois. Mais tarde, veio o interferão, as
transplantações de medula, e depois o imatinib, que foi inventado para bloquear
a
alteração genética que está por trás da doença. Agora, à
boleia desta invenção e deste resultado, estão a ir muitos outros tratamentos
que não têm o mesmo tipo de eÆcácia. Tem
insistido na ideia de que os profissionais de saúde não devem exacerbar a
esperança dos doentes. Não há só ciência. É sempre preciso um módico de esperança,
mas é responsabilidade dos proÆssionais, até moral, não iludir as pessoas para
além do que é razoável. Os médicos sentem a pressão da indústria farmacêutica?
Sim. A promoção em torno da grande esperança em relação aos medicamentos é uma
pressão muito forte e há diÆculdade de distinguir os medicamentos que são
verdadeiramente um progresso dos que são mais do mesmo. Um estudo recente
concluiu que entre 68 fármacos aprovados pela EMA [Agência Europeia de
Medicamentos, sigla em inglês], entre 2009 e 2013, só 35 demonstraram
contribuir para um significativo aumento da qualidade de vida e sobrevida dos
doentes. A EMA não filtra o que não é inovação? A EMA é uma entidade
industrial. Faz farmacovigilância e o balanço de risco/benefício dos
medicamentos. Diz se têm eÆcácia e segurança. Mas é mais estrita com a
segurança e por vezes mais permissiva com a eÆcácia. Portugal é dos países mais
permissivos. Há poucos medicamentos, como o da hepatite C, que curam? No
cancro, há o imatinib [para leucemia mielóide]. Mas a maior parte do tratamento
do cancro resulta de um conjunto de intervenções. O medicamento não é uma pedra
Ælosofal que muda tudo, como aconteceu com a penicilina. No medicamento para a
hepatite C, o que aconteceu é
medicamento que custa cerca de dois milhões de euros] curava
a doença. Não leram o que está escrito [nos estudos]. Vá ver em quantos países
da Europa, mesmo dos ricos, este medicamento foi comparticipado pelo
Estado. A saúde não é um mercado como os
outros, e uma das características que fazem com que isto não seja um mercado é
a falta de transparência. Quanto gasta o IPO de Lisboa com fármacos? Dizia no
ano passado que era um milhão de euros por semana. Esse valor já está
desactualizado. Estamos a gastar mais de cinco milhões de euros por mês, o que
dá mais de um milhão, perto de 1,2 milhões de euros por semana.
Este crescimento da despesa é sustentável? Em 28 Dezembro,
vai aparecer dinheiro para pagar às companhias no dia 31 de Dezembro. A saúde
está suborçamentada, mas não sei se está subÆnanciada. A troika não disse para não gastarmos
dinheiro, quer saber se conseguimos honrar os nossos empréstimos. E as
exigências dos credores são: pagar as dívidas. Com dívidas, ficamos mais à
mercê... Se a saúde está suborçamentada, isto predispõe a todos os vieses. Como
os orçamentos são em grande parte irrealistas, não há disciplina orçamental.
Mas pergunto: a suborçamentação não estará a dar sobreÆnanciamento? Porque no
Æm
Entrevista Alexandra Campos
notável, mas não temos nada parecido no cancro para tanta
gente. As doenças infecciosas são diferentes. [Aí lida-se] com agentes
externos. O cancro é com células nossas. Não é a mesma coisa que dar cabo de um
vírus ou bactéria. Não é de tratamento único, é uma estratégia, um conjunto.
Justifica-se que os preços dos medicamentos sejam sigilosos, quando a sua
introdução nos países está a ser negociada? Repare no que aconteceu
recentemente com aquela criança, Matilde, que tem atroÆa muscular espinhal. Eu
acredito que aqui funcionou tudo: a crença nos medicamentos, a emoção pela
criança, mas houve outra coisa: as pessoas acreditaram que [o
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Meio: Imprensa
País: Portugal
Period.: Diária
Âmbito: Informação
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acabamos por receber dinheiro para gastos que teriam sido
contidos se tivéssemos disciplina orçamental . O ministro das Finanças tem
preocupações com o déÆce, como acontece por toda a Europa, limita o mais
possível a despesa pública. Contudo, na administração dos hospitais, a grande diÆculdade é a autorização para
contratar novos funcionários. É mais difícil contratar um funcionário para o
integrar no hospital do que contratar uma prestação de serviços, fazer
outsourcing. Não tem sido fácil obter autorizações das Finanças para a
contratação de novo pessoal. Continua a
haver transferência de doentes do privado para o público a meio do tratamento?
“Se os médicos não se põem a pau, qualquer dia desaparecem,
qualquer robô faz melhor”, avisa o presidente do IPO de Lisboa. As listas de
espera aumentaram muito no IPO de Lisboa? Em 2018, em mais de seis mil
operações por ano, aumentou imenso o número de cirurgias feitas no âmbito do
SIGIC [Sistema Integrado de Gestão de Inscritos em Cirurgia, que obriga a que,
quando se ultrapassa o prazo-limite, o doente receba um vale para fazer a
interevenção noutro sítio], mas só 38 doentes quiseram ser operados fora do
IPO. Os doentes preferem ser operados no IPO, mesmo que tenham que esperar um
bocado mais. A percentagem dos que são tratados fora do tempo máximo de
resposta aumentou por via administrativa em 2018 [porque o prazo máximo foi
reduzido pela tutela], mas a realidade da espera não se modiÆcou
substancialmente. Agora, toda a gente quer que tudo seja mais rápido. Mas, para
conseguir-se isso, há reorganizações a fazer. Há muitos médicos a acumular
público e privado? Sim, e isso é mau. No IPO, temos um bom núcleo de médicos em
dedicação exclusiva, mas gostaríamos que houvesse uma parte mais substancial de
médicos e enfermeiros em dedicação exclusiva. A nossa diÆculdade é a de Æxar os
proÆssionais que são facilmente tentados por pouco mais [dinheiro] no privado.
Como olha para o que está a acontecer
com a ADSE? Não vale a pena falar do elefante que é a ADSE. A ADSE é paga pelos
funcionários públicos, mas o seu principal problema actual é não ter, também
porque houve falta de investimento em recursos humanos, capacidade de analisar
o que paga. A ADSE não tem feito uma avaliação capaz daquilo que
“Só 38 doentes, em mais de seis mil, quiseram ser operados
fora do IPO em 2018”
facturam os grandes grupos privados. Tanto quanto percebo, a
ADSE tem muitas diÆculdades em analisar a facturação no sentido crítico,
clínico, algo que no SNS, apesar de tudo, se consegue fazer. A ADSE é um grande
Ænanciador dos hospitais privados, mercê de um grande desequilíbrio
informativo, porque visivelmente não tem o aparelho de validação dos consumos
que precisava de ter. E não é um puro seguro de saúde, não tem limites de
idade, de prestações. Para ser sustentável, não pode pagar acriticamente. Mas
todos temos que ter formas de gestão que sejam adaptadas aos constrangimentos
que existem actualmente e que continuem a preservar o serviço público,
diminuindo a necessidade de recorrer aos privados. Acredita que o cancro vai
ter cura dentro de alguns anos? Não. O cancro é nosso… O que pensa da
utilização das palavras guerra e guerreiros quando se fala dos doentes
oncológicos nos media? Acho que é injusto usar essa metáfora bélica. Pense na
angústia da pessoa que não se está a safar, por contraste com os
guerreiros. Com o cancro, a vida está
alterada para sempre, não há uma maneira boa de se passar por isto. Mas podemos
fazer melhor se não complicarmos a vida às pessoas, se lhes explicarmos as
coisas. O principal problema dos doentes é não saberem quando vão ser tratados.
Também temos que ser dinâmicos na sua avaliação. Temos que ser médicos, coisa
que é cada vez mais difícil. Somos cada vez mais intermediários de tecnologias
e a parte relacional perde-se. Se os médicos se não se põem a pau, qualquer dia
desaparecem, qualquer robô faz melhor.
Veja o que aconteceu ao SNS inglês: já foi! É sobretudo uma grande central de compras
Temo que estas diÄculdades na contratação de recursos
humanos redundem num aumento de privatização do que se faz
A ADSE é um grande Änanciador dos hospitais privados
Se os médicos não se põem a pau, qualquer dia desaparecem,
qualquer robô faz melhor
[No caso do bebé Matilde] as pessoas acreditaram que [o medicamento de dois milhões de euros] curava a doença
Doentes oncológicos guerreiros? É injusto usar essa
metáfora. Pense na angústia da pessoa que
não se está a safar
Isto complica a tomada a cargo destes doentes porque o
tratamento é uma trajectória que tem que ter um princípio, meio e Æm. Uma das boas
características do SNS é a complementaridade. Os tratamentos não são gestos
separados, uma PET aqui, uma TAC acolá. Ainda bem que existe um SNS porque
tratar de uma pessoa não é coisa que se faça em lojas separadas. É um defensor acérrimo do SNS. Ainda não vi
outra maneira melhor de tratar as pessoas, esta coerência interna do serviço.
Veja o que aconteceu ao SNS inglês: já foi. Neste momento, o SNS inglês é
sobretudo uma grande central de compras, de outsourcing, e por lei. Os ingleses
decretaram que qualquer prestador privado pode prestar serviços em igualdade
com o público. Isso pode acontecer em Portugal? Não pode, isto é o que está a
acontecer. Não estou a dizer que o Ministério das Finanças faz de propósito,
mas temo que estas diÆculdades na contratação
redundem num aumento de privatização. A questão essencial é o risco de
que o SNS sirva apenas de plataforma de passagem de dinheiro público para os
privados. Na Inglaterra, o SNS tem o nome, mas o mecanismo em si, a prestação,
já não é pública, uma enorme parte é privada. É importante que a Lei de Bases
da Saúde tenha Ærmado o primado do público em relação ao privado, mas isso não
impede esta transposição para o fornecimento externo que está a acontecer
debaixo do nosso nariz. Receio que muita da prestação pública possa correr o
risco de se privatizar, por ter de se comprar fora. O SNS está pior ou melhor? Acho que está
melhor. É muito fácil atacar o SNS. Mesmo a esquerda faz isso, quando acha que
o está a defender e reclama porque agora, em vez de um centro de saúde fechar
às 8h00, fecha às 6h00. Que isso seja o essencial da acção na Assembleia da
República, que se olhe para a árvore e não para a Çoresta é falta de visão
política.
Leia a entrevista na íntegra em www.publico.pt
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