INTRODUÇÃO
Publicamos a analise e resposta do Bastonário da Ordem dos Médicos , Dr. Miguel Guimarães as afirmações insultuosas para a classe médica proferidas pelo anterior Secretario de Estado de Saúde Dr. Manuel Delgado em entrevistada aoSapo 24 ( igualmente transcritas na integra) .
( https://24.sapo.pt/…/manuel-delgado-sou-do-tempo-em-que-se....)
Justifica-se esta publicação devido ao Dr. Manuel Delgado ter sido o representante do Ministério da Saúde na Apresentação publica de Concurso do futuro Hospital de Lisboa Oriental que decorreu no Hospital de Santa Marta em 1 de Agosto de 2017 e esta entrevista vir a corrobar as nossas conclusões sobre a incoerência e fundamentação do discurso que então proferiu. (Ler no Blog : http://campanhapelohde.blogspot.com/2017/07/um-discurso-cheio-de-certezas-incertas.html ).
Nos discursos de apresentação do concurso P.P.P. , Manuel Delgado e os outros gestores , preocuparam -se em dar ênfase aos benefícios e lucros que as Parcerias Publico Privadas poderiam auferir com o novo projeto e ostensivamente ignoraram o futuro, que se advinha sombrio para o Hospital Pediátrico Lisboa que estão a desarticular com o objetivo explicito de no futuro o encerrarem e por maioria de razão as consequências nefastas assistência hospitalar terciária pediatrica do Sul do Pais
A analise da entrevista de M.D. e a resposta M.G são desta forma importantes por revelarem o pensamento Manuel Delgado e de indiretamente refletirem o do grupo de gestores e administradores que tem se feito representar no Ministério da Saúde nos últimos 30 anos empenhados no processo de privatização do SNS e na implementação da atual reforma Hospitalar e merecem ser transcritas neste BLOG.
Na sua resposta o Dr. Miguel Guimarães refere, mas não explicita " as relações ou tráfego de influências que podem envolver ou ter envolvido MD " Não nos vamos referir às Raríssimas nem à IQVia. " mas se o fizesse encontraria por certo relações "
Por outras palavras o Dr. Miguel Guimarães, não quis se pronunciar sobre as relações e ligações nacionais e internacionais que o grupo de gestores á que pertence M.D tem com os grupos financeiros os ligados ao negócio da saúde. Não fosse assim alguns defensores do atual projeto encontram-se implicados judicialmente.
Manuel Delgado no seu discurso ofendeu e denegriu os Profissionais de Saúde julgando-os pela mesma bitola de valores que orientam a si e ao grupo de gestores promotores da atual reforma Hospitalar que na sua essência são de índole mercantil.
A entrevista revela que Manuel Delgado e o grupo de gestores a que esta ligado demonstra que são cegos e incapazes de compreender os valores humanistas éticos e profissionais que orientam a grande maioria da classe médica e os profissionais de saúde , incluindo-se os gestores e administradores hospitalares que não pertençam a ala neoliberal.
Forme a sua própria opinião :
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Caros Colegas,
A entrevista dada pelo ex-secretário de Estado da Saúde ao
Sapo24 no dia 17 de agosto é ofensiva para a dignidade dos médicos, revela um
total desrespeito por aqueles que lutam por manter o SNS acima da linha de
água, constitui uma afronta aos cidadãos portugueses e, em especial, aos
doentes.
A injustiça e a falsidade de muitas das afirmações de Manuel
Delgado (MD), que põe em causa a integridade ética e científica dos médicos e da nobre
missão do Serviço Nacional de Saúde (SNS), compelem-me publicamente, a
desmascarar de forma objetiva os insultos gratuitos que ferem a dignidade dos
médicos e da relação médico-doente.
Vivemos tempos difíceis, em que o bom senso e a educação
deveriam imperar. Em que os portugueses deveriam estar unidos em torno de
objetivos essenciais, como a solidariedade e a justiça social, e em que
existisse mais respeito pelas pessoas que construíram o SNS, pelos
profissionais de saúde e pelos doentes.
Infelizmente, o ex-secretário de Estado da Saúde violou
todos os princípios éticos e deontológicos que devem prevalecer na relação
entre as pessoas.
Não nos vamos deter com as relações ou tráfego de
influências que podem envolver ou ter envolvido MD. Não nos vamos referir às
Raríssimas nem à IQVia. Mas não podemos deixar de realçar algumas das mentiras,
inverdades, desvarios ou ideias negativas de MD.
A análise que se segue deve ser acompanhada da leitura da
referida entrevista disponível em
https://24.sapo.pt/…/manuel-delgado-sou-do-tempo-em-que-se-… :https://24.sapo.pt/…/manuel-delgado-sou-do-tempo-em-que-se....
Não é verdade que sejam os médicos a decidir a constituição
das equipas. Os médicos têm concursos nacionais e são colocados de acordo com a
sua classificação. Muitos serviços gostavam de contratar médicos que
desenvolveram competências específicas numa determinada área e não o conseguem
fazer. Com exceção das USF, em que a constituição das equipas é feita em
conjunto e envolve todos os profissionais de saúde, os médicos não têm
influência na escolha dos outros profissionais de saúde que constituem as
equipas. É falso que sejam os médicos que decidem, sem critérios clínicos, a
chegada e a saída de doentes, como é sugerido. Na verdade, tal decisão está
dependente dos sistemas de gestão de inscritos para consulta hospitalar ou para
cirurgia, das prioridades atribuídas em função da complexidade da doença e da
gravidade e evolução da situação clínica do doente. Não é verdade que os
médicos não tenham um interlocutor a quem prestar contas sobre resultados. MD
desconhece a função dos diretores de serviço, diretores de departamento e
diretores clínicos, todos nomeados pelos respetivos Conselhos de Administração
(CA) ou pela tutela no caso dos diretores clínicos.
MD não entende a importância capital das carreiras no
desenvolvimento do SNS e da formação médica especializada e contínua,
desvalorizando a essência do serviço público. Quem não percebe a importância
das carreiras profissionais na organização dos serviços, no trabalho de equipa,
na avaliação das pessoas, na investigação, na apresentação de resultados, na
diferenciação técnico-científica e na formação pré e pós-graduada, não sabe
nada de organização e de gestão. É compreensível que não saiba ler e avaliar um
currículo médico apresentado a concurso. Compreensível, mas lamentável por se
pronunciar sobre matéria para a qual não tem competências específicas.
MD, após 16 anos como presidente da APAH e gestor durante
vários anos, quer dar um novo impulso à componente gestionária, em detrimento
da qualidade do exercício da medicina e da observância das boas práticas
médicas. MD não deve falar do que desconhece. Não fale em salvar vidas, quando
nunca terá salvo nenhuma. Pelas funções gestionárias que há vários anos
desempenha, nunca deve ter tido um doente na iminência de lhe morrer nas mãos.
Nunca deve ter tido que fazer um parto complicado. Nunca deve ter visto nem
terá tido de decidir (felizmente) o que fazer a um doente politraumatizado
grave. Nunca deverá ter tido um doente complicado em que precisava de meios
adicionais para resolver a situação e não os tinha... Não fale do que não sabe
e deixe os médicos trabalhar.
Infelizmente, alguns dos chamados gestores de carreira
apenas se preocupam com números, muitos números de consultas, de cirurgias, de
procedimentos, e menos números na despesa. Claro que são os médicos que tratam
os doentes. E ainda bem, faz parte das suas competências. Já pensou no que
aconteceria se fossem os gestores de carreira a decidir e a tratar os doentes e
a liderar a despesa? Os doentes decresciam rapidamente e a despesa começaria a
subir. Quer discutir com os médicos o que é um bom resultado clínico numa
determinada patologia? Qualquer um deles pode desvelar a falta de conhecimento
de MD nesta matéria. Por exemplo, será que MD nos sabe dizer o que é um bom
resultado clínico num doente com cancro da próstata? Pois..., é complicado.
A autoridade dos médicos resulta das suas próprias funções e
competências, que decorrem do seu nível de conhecimento científico e técnico
adquirido durante 11 a 13 anos (dependente da especialidade) e aprofundado ao
longo da sua vida profissional, que lhes permite salvar vidas e tratar os
doentes de acordo com as boas práticas clínicas. Mas, sobretudo, porque têm um
nível de responsabilidade sem paralelo noutras profissões. A medicina é a área
profissional mais complexa, mais apaixonante, mais humana, mais interventiva,
mais desgastante, mais responsável e, claro, aquela em que o erro pode ser
fatal. De resto, qualquer possível erro médico conhecido “faz” logo a capa dos
jornais. Isto é, os médicos, mesmo antes de serem apuradas as circunstâncias de
um determinado caso clínico, começam por ser julgados e responsabilizados na
praça pública. E não são remunerados de acordo com a responsabilidade que têm
na sociedade civil.
Os médicos não lideram o ranking das remunerações e da qualidade
de vida. É mentira. A remuneração base média mensal ilíquida dos médicos
reportada pela DGAEP (Direção Geral da Administração e do Emprego Público) é de
2746,9€, a que corresponde uma remuneração base média mensal líquida de 1620,7€
(este valor médio inclui todos os médicos que trabalham no SNS). É repulsivo e
assustador o conhecimento que MD tem sobre o que faz um médico no SNS. Para ele
aparentemente contam apenas as cirurgias! As outras atividades são todas
esquecidas: as consultas, a atividade clínica no internamento, a realização de
procedimentos invasivos fora do bloco central, como por exemplo biópsias ou
exames endoscópicos, a realização de meios auxiliares de diagnóstico e
terapêutica, os tratamentos em ambulatório ou hospital de dia, o ensino
pré-graduado, a formação de jovens médicos internos, os relatórios médicos, o
apoio aos doentes internados em todo o hospital, o trabalho no serviço de
urgência e na emergência médica, o trabalho em contexto de unidades de cuidados
intensivos ou intermédios, a investigação clínica, a atualização de
conhecimentos e o estudo continuado, as reuniões de médicos (reuniões de
serviço, reuniões de grupos específicos como é o caso dos diversos grupos
oncológicos,...), escutar e olhar os doentes, as revisões terapêuticas, as
explicações aos doentes e familiares do seu estado clínico e do plano em curso,
o esclarecimento de dúvidas entre colegas, entre muitas outras atividades que
MD desconhece.
O trabalho no setor público nunca foi tão rentabilizado. De
tal forma, que os médicos não conseguem atualmente desempenhar todas as tarefas
no seu tempo normal de trabalho. Para além disso, a grande maioria dos médicos
está a trabalhar sobre uma pressão imensa que lhe é imposta pela tutela
(consultas sobrepostas, várias tarefas em simultâneo, exigências inaceitáveis,
exploração vergonhosa dos médicos internos da especialidade em vários
hospitais, ...). MD nunca se preocupou em saber porque milhares de médicos
abandonaram o SNS nos últimos anos. Uma incapacidade política preocupante. O
elevado nível de burnout entre os médicos está devidamente documentado, em
vários estudos independentes realizados sobre esta matéria. Ignorá-los é
ignorar a realidade, é não se interessar pelas pessoas, é não querer ver e
ouvir como trabalham os profissionais! Os médicos não são pagos pelos atos
médicos que realizam, porque o Ministério da Saúde nunca quis, nem vai querer.
E sabe porquê, não sabe?
O modelo de contratação médica no serviço público é aquele
que o Governo decide. MD aparentemente nada fez para alterar esse modelo. Se
dependesse da Ordem dos Médicos o modelo seria necessariamente diferente.
MD certamente tem uma ideia concisa e precisa do que disse
sobre os médicos: “...senta-se na cadeira e lê “A Bola” ou liga o computador e
vê a sua vida pessoal...”. Teima em ofender quem luta diariamente por manter a
capacidade de resposta do SNS. Nunca esperamos que alguém, com responsabilidade
política, pudesse fazer tantas afirmações revoltantes e falsas sobre os
médicos. Esta afirmação tê-la-á que a provar nas instâncias próprias. Será que
nos sítios onde trabalhou “A Bola” era leitura diária usual, fazia parte do
trabalho e por isso julga que se faz o mesmo nos hospitais? Será que já terá
estado a ler “A Bola” com algum médico num hospital? Tem ideia, ainda assim,
que se esqueceu do “Record” e do “Jogo”? Ou será apenas para denegrir “A Bola”?
A generalização de MD é injusta, perigosa e terá que ser devidamente
identificada, inspecionada e verificada pelos organismos competentes. E se a
certeza do que afirma é assim tão grande, no mínimo como cidadão responsável
deveria denunciá-lo nas instâncias próprias. Porque não o fez? Então a solução
que alvitra é a de que “não se pode pagar a um médico por horas de trabalho,
deve-se pagar por trabalho realizado”, reintroduzindo-se no século XXI formas
de organização do trabalho próximas da escravatura. Para quem se diz servidor e
defensor da causa pública, a afirmação produzida é, no mínimo, repulsiva.
Os médicos não são responsáveis pelas deficiências e
insuficiências do SNS. Se alguns políticos (como é o caso de MD) tivessem o bom
senso e responsabilidade dos médicos, a situação ao nível da Saúde estaria
muito melhor. E provavelmente alguns deles, se assumissem integralmente as suas
responsabilidades, estariam a pensar noutras atividades.
O número de médicos que trabalham no SNS está no site da
ACSS (18.388 médicos especialistas e 9.996 médicos internos). O número que MD
refere é, assim, falso. E é falso que os médicos de família tenham em média uma
lista de 1500 utentes. Os médicos de família têm uma lista de 1950 utentes (em
média e dependente das unidades ponderadas). Os médicos de família também não
fazem uma “perninha” em bancos de urgência de hospitais públicos, vão trabalhar
a sério no serviço de urgência suprindo deficiências e faltas de médicos como,
de resto, pode ser verificado em qualquer hospital do país. E só fazem serviço
de urgência porque todos esses serviços têm uma grave falta de médicos. Por
isso estes médicos contribuem com o seu esforço adicional (tal como acontece
com a maioria dos médicos hospitalares que semanal e sistematicamente são compelidos
a realizar horas de trabalho extraordinário) tentando equilibrar a capacidade
de resposta do serviço urgência.
MD nada fez para reformar o serviço de urgência, aumentar a
capacidade de resposta dos centros de saúde (em capital humano e em exames auxiliares
de diagnóstico) e definir e aplicar um plano de literacia em saúde para a
população. A Ordem dos Médicos tem vindo a reclamar medidas urgentes, mas até
agora sem resposta por parte do Ministério da Saúde.
MD desvaloriza de forma ridícula as USF (agredindo os seus
profissionais de saúde, o trabalho em equipa e os seus próprios mentores). De
resto, os médicos não querem todos trabalhar em USF. MD desconhece a forma como
se constituem as USF. É grave que MD não saiba que existem estudos comparativos
entre as USF e as UCSP, e que existem atualmente mais de 800.000 portugueses
sem médico de família atribuído. Não sabe que os médicos de família estão
sobrecarregados pelo número excessivo de utentes a seu cargo e já ultrapassaram
o limite da sua capacidade de trabalho em função da imensidão de competências e
tarefas que lhes são atribuídas. Para aumentar a capacidade de resposta dos
cuidados de saúde primários é preciso contratar mais médicos de família
(repita-se, ainda existem mais de 800.000 portugueses sem médico de família).
MD desconhece os resultados publicados sobre a linha Saúde
24. Omite nada ter feito pela reforma da saúde como secretário de Estado da
Saúde (SES). O apoio domiciliário é, seguramente uma medida importante no
contexto do SNS, mas onde estão os profissionais de saúde necessários a um
apoio permanente? Num momento em que faltam, na estrutura do SNS, milhares de
médicos, de enfermeiros e de operacionais técnicos e administrativos e outros
profissionais, em que mais de 800.000 portugueses não têm médico de família, em
que os serviços de urgência estão depauperados e só sobrevivem à custa do
trabalho suplementar ou de tarefa, em que milhares de doentes não são tratados
de acordo com os tempos máximos de resposta garantidos definidos pelo próprio
Ministério da Saúde, em que as regiões mais periféricas e interiores estão
carentes de profissionais, como é possível enquadrar esta medida de forma
permanente? Há uma falta de seriedade nas afirmações que MD faz sobre o SNS. MD
nada fez de concreto e estruturante para regular os lares de terceira idade e
obviar ao que se passa em alguns deles, em que as condições são desumanas.
As políticas públicas que MD acarinhou e que têm vindo a ser
seguidas agravaram ainda mais a situação do SNS e tornaram a Saúde mais
hospitalocêntrica e mais centrada nos grandes hospitais públicos e privados. E
foram tomadas objetivamente medidas para isso. Senão vejamos: Como é possível
diminuir os tempos máximos de resposta garantidos sem aumentar a capacidade de
resposta dos hospitais? Como é possível implementar no SNS a liberdade de
escolha, sem primeiro corrigir as graves deficiências que afetam muitos
hospitais e, sobretudo os hospitais mais periféricos? Pode gabar-se, isso sim,
de ter aumentado as desigualdades sociais em saúde e ter permitido que o acesso
à saúde passasse a estar cada vez mais dependente de um código postal!
Muitos doentes que têm necessidade de “estar no hospital”
também têm doenças crónicas, contrariamente ao que é afirmado por MD. De resto,
para deixar os hospitais “respirarem um bocadinho” é preciso tomar medidas
concretas e investir, o que não aconteceu durante o curto mandato de MD. Mais
ainda, no que diz respeito ao número de camas hospitalares por 1000 habitantes,
Portugal (3,4) está claramente abaixo da média dos países da OCDE (4,7). E a
aposta nas camas de cuidados de proximidade (continuados, paliativos e cuidados
domiciliários) é claramente insuficiente e incapacitante (como de resto é
revelado pelo relatório Primavera 2018 do Observatório Português dos Sistemas
de Saúde).
MD assume de forma plena a falta de resposta do SNS por
incapacidade de contratar os profissionais necessários. A objetividade com que
aborda a questão do Centro de Reabilitação de São Brás de Alportel, desmascara
completamente aquela que tem sido a política de saúde seguida: favorecer o
setor privado em detrimento do setor público. De resto, deixa bem clara aquela
que é a política de contratação do Governo e a valorização que é atribuída à
Saúde. Na verdade, acaba por assumir que “sem ovos não se fazem omeletes”, e
depois tenta encontrar bodes expiatórios para a falta de ovos!
Perante as suas levianas afirmações fica o desafio de
analisar qual a capacidade de resposta efetiva do SNS aos cerca de 10 milhões
de portugueses. Pois é, é cada vez mais insuficiente! Mas a população que é
atendida no SNS, mesmo com tempos de espera prolongados, tem o privilégio de
contar com profissionais de excelência, resultante de uma elevada qualidade de
formação. Continuamos a ter uma medicina de grande qualidade, e estamos a
acompanhar o desenvolvimento da nova medicina que, como é conhecido, é
exponencialmente rápida. E isto, deve-se basicamente à formação continuada que
nem sequer é apoiada direta e totalmente pelo Estado. De facto, a excelência do
SNS reside nas pessoas, nos profissionais de saúde, que devem ser tratados com
respeito e dignidade, e não como MD faz ao longo desta sua entrevista. Em
agosto de 2017, a Ordem dos Médicos apresentou uma carta de compromissos ao
Ministério da Saúde contendo cerca de 50 propostas para melhoria da Saúde e do
SNS, mas só recentemente (julho de 2018) obteve uma resposta do Ministério da
Saúde.
Diga-nos MD, por favor, quais são os serviços que têm
médicos a mais e quais são as especialidades com médicos em excesso no SNS? Já
experimentou alguma vez fazer as contas com base nos rácios e condições de
trabalho apresentados a nível europeu? E se estão em excesso em algum hospital,
porque é que o próprio Ministério da Saúde continua a abrir vagas para
assistente hospitalar nesse hospital e não naqueles que têm deficiência? Os
médicos não caem de paraquedas nos hospitais! A política de recursos humanos é
definida pelo Governo, pelo Ministério da Saúde. Se não é a mais adequada, a
responsabilidade é inteiramente dos detentores de cargos políticos na saúde a
nível nacional, regional e local e não dos médicos. Quanto à questão do
hospital da Luz aconselhamos V. Ex. a falar com a Eng.ª Isabel Vaz para lhe
explicar como são aí remunerados e tratados os médicos!
Mais uma observação relativa aos médicos internos, que se
repetida várias vezes até pode parecer verdade. Como ex-secretário de Estado da
Saúde deveria saber que o SNS tem atualmente 9.996 médicos internos em formação
(ver site da ACSS); estes médicos internos asseguram várias funções no seu
processo de aprendizagem (constituem com os especialistas as equipas de
urgência, os blocos operatórios, as visitas aos doentes internados, participam
nas consultas orientados pelos especialistas, e fazem um sem número de
procedimentos e outras atividades clínicas, onde se incluí o ensino, a
investigação, ...); se porventura estes médicos internos amanhã deixassem de
trabalhar, o SNS entrava em colapso; por isso, as remunerações destes jovens
médicos estão amplamente justificadas e diria até que são credores e não
devedores (como afirma) do Estado. Sabe porque é que todas as unidades de saúde
querem ter a possibilidade de formar especialistas? Então pense lá porquê. Aqui
vai uma ajuda: serviços sem uma mistura de jovens médicos com médicos mais
experientes têm uma dificuldade acrescida em acompanhar a inovação e o
desenvolvimento da nova medicina. De resto, são muitas vezes os jovens o motor
da atualização contínua de conhecimentos. E já pensou porque é que a capacidade
formativa nos hospitais privados não é maior? Mais uma vez, informe-se bem para
não dizer falsidades. A referida “galinha dos ovos de ouro” mantém-se
contratando os médicos para o SNS, consagrando condições de trabalho adequadas
ao exercício pleno da profissão e da formação, e como sabe não foi nem tem sido
esta a sua política de saúde. Só para lhe dar um exemplo, o penúltimo concurso
para recrutamento de médicos assistentes hospitalares foi aberto cerca de 10
meses depois dos médicos terminarem a especialidade, tendo como resultado o
abandono do SNS por parte de centenas de médicos. O que demonstra de forma
inequívoca o desinteresse do Governo em contratar aqueles médicos, que se
mantiveram no SNS remunerados como internos quando já eram médicos especialistas
há vários meses.
No calor da entrevista deixa cair mais uma afirmação
enganadora. Em Portugal não temos falta de médicos, mas temos falta de médicos
no SNS. Trabalham atualmente em exclusivo no setor privado cerca de 13.000
médicos e emigraram milhares de médicos nos últimos 5 anos. Uma conta simples,
considerando as horas suplementares/extraordinárias realizadas pelos médicos do
SNS (cerca de 21% da remuneração média mensal) e o valor pago a empresas
prestadoras de serviços médicos no SNS (em 2017 foram cerca de 120 milhões de
euros), demonstra de forma clara que faltam no SNS cerca de 5.500 médicos. Isto
sem entrar em linha de conta com o que o Estado gasta em convenções com o setor
privado e social, nomeadamente com a realização de exames auxiliares de
diagnóstico e terapêutica e com os custos associados aos vales cirurgia entre
outras despesas igualmente importantes (estamos a falar de centenas de milhões
de euros). Se ainda pensarmos que, mesmo assim, a capacidade de resposta do SNS
é deficiente e que a maioria das unidades de saúde trabalha em défice
permanente, o número de médicos em falta no SNS é ainda maior. Entendeu as
contas? É simples, não é? Que o cidadão comum não saiba é natural, mas que um
ex-secretário de Estado da Saúde recente não saiba, é grave. Claro que não é
fácil resolver a situação das regiões mais carenciadas. Mas também é verdade
que o Ministério da Saúde é quem autoriza a abertura de vagas para os concursos
nacionais, decide os locais onde são abertas as vagas, e tem, ao longo dos
últimos anos, autorizado em paralelo, contratações diretas para os hospitais
com maior poder de intervenção junto do poder político. Além disso o Governo
dispõe da possibilidade de implementar uma nova e verdadeira política de
incentivos transversal a todos os profissionais das áreas mais carenciadas (e
não apenas para àqueles que vão para lá trabalhar ‘de novo’). Porque é que não
avança? Por uma questão de custos ou será que lhe interessa cada vez mais
concentrar a Saúde nos grandes centros? De resto, é sempre negativo tentar
obrigar as pessoas a irem trabalhar para um determinado local contra a sua
vontade. A discriminação deve ser sempre pela positiva.
MD fala em “mecanismo habilidoso e em ganchos” para os
jovens médicos que não aceitam ir trabalhar para determinados locais. A
linguagem não é apropriada. Os médicos, como quaisquer cidadãos, têm o direito
de trabalhar onde se sentem mais confortáveis, onde são melhor tratados, onde
lhes dão melhores condições de trabalho. Não deixa de ser curioso que são os
políticos que definem as regras a nível europeu, nomeadamente a livre
circulação de médicos, e queixam-se que milhares de médicos emigraram nos
últimos anos. Mas então, estão à espera de quê? Aceitamos estar na Europa, mas
não temos capacidade concorrencial com a maioria dos países europeus,
designadamente com aqueles que fazem parte da dita Europa Ocidental. Não seria
este um motivo forte de reflexão para entenderem definitivamente que não estão
a dar as melhores condições de trabalho aos médicos (férias, formação, projetos
de trabalho e de investigação, meios técnicos adequados para exercerem a
profissão em pleno, ...)? E é sempre bom lembrar que, ao perdermos tantos
jovens médicos, estamos a perder a capacidade de inovação e de acompanhar o desenvolvimento
da nova medicina. A propósito não posso deixar de recordar as palavras do
Primeiro-Ministro enquanto Secretário-Geral do Partido Socialista durante o
último Congresso: “é uma prioridade para nós recuperar os jovens que têm saído
do país trazendo-os de volta para Portugal”. E então os novos jovens que se vão
formando, não seria interessante e mais fácil ter uma política inteligente que
os levasse a escolher o nosso país como local de trabalho?
Na sequência da entrevista MD encaixa mais um “gancho
negativo”. Sugere que o que está mal na Saúde é da responsabilidade dos médicos
e da Ordem dos Médicos! Inacreditável! O senhor ex-secretário de Estado da
Saúde não faz a mínima ideia do que se passa no país nesta matéria. Ou então
tem alguns amigos médicos importantes que ganham os tais 14.000 euros por mês
no setor privado. Primeiro, quem acabou com o regime de dedicação exclusiva
opcional foi o próprio Estado (em 2009). E porquê? Porque muitos médicos
estavam a optar por trabalhar apenas no setor público em regime de dedicação
exclusiva. Como sabe, a Ordem dos Médicos apresentou uma proposta ao Ministério
da Saúde no sentido de ser reposta a possibilidade de os médicos poderem optar
por trabalhar em regime de dedicação exclusiva tal como acontecia antes de
2009. E sabe o que aconteceu, não sabe? Foi rejeitada! E porquê? Porque o
Ministério da Saúde afirmou não ter a possibilidade de ter médicos a trabalhar
em dedicação exclusiva por uma questão financeira (claro, o Ministro das
Finanças não iria estar de acordo). Por isso, é uma falácia a discussão sobre a
dedicação exclusiva opcional. Nesta, como noutras matérias, convém ser sério.
Quanto aos incumprimentos de horário e baixa produtividade, se têm conhecimento
de algum caso, porque não intervêm os respetivos responsáveis nomeados pela
tutela ou a própria tutela punindo os infratores, em vez de publicamente tomar
a ínfima parte pelo todo. Se a maioria dos titulares de cargos políticos ao
nível do Ministério da Saúde tivessem a mesma responsabilidade, a mesma
competência e a mesma qualidade que a imensa maioria dos médicos tem, o nosso
país estaria muito melhor. Os “Ronaldos” e “Mourinhos” da área médica estão um
pouco espalhados por todo o mundo, mas quase ninguém fala deles. E sabe porquê?
Porque salvam vidas, porque abdicam de uma grande parte da sua vida para se
dedicarem aos doentes, porque contribuem para a investigação e a descoberta de
novos tratamentos, porque não fazem parte da “elite” do futebol ou da política.
Mas MD não sabe quando parar! As suas afirmações são cada
vez mais enérgicas na sobreposição da gestão técnica à medicina. Ainda vamos
chegar à conclusão que não precisa de médicos no SNS. Já entendemos que, na sua
perspetiva, o melhor era empurrar a imensa maioria dos médicos para o setor
privado e para o estrangeiro, e ficar com um SNS minguado para dar alguma
resposta aos doentes que não têm qualquer possibilidade de recorrer ao setor
privado. Pois bem, saiba V. Ex. que a Ordem dos Médicos se opõe a qualquer
tentativa de exterminar o SNS. O SNS, o grande baluarte do estado social, é
demasiado importante para todos os portugueses. E o caminho é exatamente o
contrário daquele que defende. Tal como o Dr. António Arnaut e o Dr. João
Semedo, cujo título do último livro que escreveram “Salvar o SNS” já constituía
em si mesmo um grito de alerta, estamos aqui para defender os doentes, a
qualidade da medicina onde quer que seja praticada, e um SNS forte e com
capacidade de resposta adequada e qualificada às necessidades dos portugueses.
E este caminho significa reforçar o SNS e não o contrário. De resto, como
gestor que é, deveria saber que quanto melhor for o SNS, melhor será a medicina
privada e social. E existe um espaço apropriado para todos. Uma pequena nota adicional,
competência e volume de trabalho são coisas diferentes.
No que diz respeito ao orçamento de Estado para a Saúde, uma
coisa é a Saúde no global e outra coisa é o SNS. E como deveria saber melhor
que nós, o que está previsto para 2018 para a Saúde é 5.2% do PIB e para o SNS
4.8% do PIB. O que significa que os valores absolutos apontados por si não
estão corretos. Além disso, as críticas feitas pela oposição política são
claramente justas. Criar uma pressão inqualificável sobre todas as unidades de saúde
(CA) atribuindo orçamentos que se sabe à partida não serem suficientes para as
despesas correntes esperadas (recursos humanos, medicamentos e outras despesas)
é uma má prática de gestão política que tem efeitos adversos sérios ainda por
determinar de forma completa. De resto, os próprios administradores
hospitalares são na sua maioria da mesma opinião. Acumular dívidas de forma
permanente não dá credibilidade ao Estado nem é um bom exemplo para os
portugueses. Imagine que os portugueses pagavam os impostos com um atraso de um
ano ou dois. Já imaginou? Claro que a consequência imediata desta gestão
política adversa resulta em menor disponibilidade das empresas fornecedoras de
medicamentos, dispositivos e materiais clínicos, para constituírem stock adequado
e existem falhas conhecidas no fornecimento com implicações negativas para os
doentes, contrariamente ao que afirma.
Os médicos que trabalham no SNS, tal como todos os
funcionários públicos, têm deveres (e não são poucos) e alguns direitos que
devem ser respeitados. Na entrevista já se percebeu que MD se pudesse “mandar”
no Governo tinha uma enorme vontade de implementar uma nova forma de
escravatura no século XXI, a exploração ilimitada dos médicos. V. Ex. sabe que
isso não é possível. E também sabe que terá a oposição dos Sindicatos e da
Ordem dos Médicos. Mas também da sociedade civil. É que se perguntar aos
doentes se preferem ter médicos ou uma plêiade de gestores nos hospitais, a
resposta parece óbvia. Pense nisto!
Os médicos queixam-se das condições de trabalho e muito bem,
porque têm a obrigação de defender a segurança clínica e as boas práticas de
acordo com a legislação e o seu Código Deontológico. Quanto aos horários de
trabalho nem merece grandes comentários (“uns entram às 08h e outros entram às
11h?” e, entretanto, são substituídos nos doentes que estão a operar, nas
consultas que estão a fazer, nos doentes que estão a observar nos
internamentos, nos relatórios médicos que estão a fazer...?). De resto, os
horários dos médicos, como deve saber, não são feitos nem aprovados pelos
próprios e os médicos trabalham em equipa, nomeadamente com outros médicos e
outros profissionais de saúde. Não conhecemos nenhum hospital que tenha
atividade clínica apenas até às 14h.
As equipas não são autogeridas. Quem faz a gestão das
equipas são os CA e os diversos diretores nomeados pelas administrações. Acha
mesmo que é possível ter os médicos a trabalhar em serviço de urgência da forma
que sugere, às pinguinhas, com períodos de, teoricamente, menor afluência sem
médicos? Por exemplo, tem ideia do funcionamento dos blocos operatórios no
serviço de urgência? Mais um disparate! Os médicos fazem turnos de 12h de
serviço de urgência (e às vezes 24h) por necessidade dos hospitais e não por
conveniência pessoal. É que, contrariamente a outros profissionais, a imensa
maioria dos médicos não trabalha só no serviço de urgência, fazem também muitas
outras atividades clínicas (internamento, consulta externa, bloco
operatório,...).
As negociações com os vários Sindicatos do setor foram, no
seu tempo, um fracasso total, e não o contrário como sugere. E porquê? Porque
não cumpriu os compromissos supostamente alcançados com os Sindicatos. Uma
falácia!
Mais um sofisma sobre proximidade de cuidados de saúde. Se
quiser entender o que é humanização e proximidade em cuidados de saúde teria um
longo caminho a percorrer, começando pela relação médico-doente.
Se quiser perceber porque é que os médicos com funções de
direção têm apresentado a sua demissão, basta ouvi-los e visitar os respetivos
serviços. Porque não experimentou enquanto foi SES? O resto é a aplicação da
legislação em vigor, que o Governo ignora demasiadas vezes. Lembro novamente
que apesar da sua enorme vontade em escravizar os médicos, ninguém vai aceitar
que os direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição da
República Portuguesa e na legislação do trabalho continuem a ser desrespeitados
no âmbito do trabalho médico.
Sobre os seguros e os impostos a entrevista é caricata. Os
seguros privados não saem dos impostos gerais, nem as pessoas deixam de pagar
impostos porque os contratam. De resto, o que vale a pena salientar mais uma
vez é a necessidade absoluta de reforçar a capacidade de resposta do SNS.
Então porque é que não sabemos quanto é que se gasta na
Saúde do orçamento de Estado? 5.2% do PIB diz-lhe alguma coisa? Uns cidadãos
gastam mais, outros gastam menos. Uns recorrem também aos serviços privados
pagando diretamente do seu bolso, outros não. Pois é senhor ex-secretário de
Estado da Saúde, como sabe os portugueses gastam cada vez mais diretamente do
seu bolso na saúde. E a estratégia política mantém-se, empurrando cada vez mais
os doentes para o setor privado. O que cria desigualdades sociais em saúde
terríveis. O senhor, como SES, nada fez para alterar esta realidade, apesar de
todos os alertas da sociedade civil. Porque não reforçam a capacidade de
resposta do SNS?
Então nem sequer sabe como defender as administrações
hospitalares? Tenta sempre culpabilizar os médicos pela má gestão política
(vício de quem sendo gestor de carreira é, também, político). Porque não diz
que é inaceitável as administrações hospitalares terem orçamentos incompatíveis
com as suas necessidades? Porque não defende mais autonomia e flexibilidade na
gestão para as administrações hospitalares? Porque não defende orçamentos
plurianuais e uma lei de meios para fazer frente à missão complexa de gerir
hospitais? Porque não defende um orçamento independente para renovar
equipamentos e/ou fazer a sua manutenção adequada? É admirável como, na parte
final da entrevista, já está a sugerir que as administrações são incompetentes?
Ou que não têm a coragem de denunciar as condições miseráveis em que são
obrigados a trabalhar? Algum administrador já lhe disse que o seu orçamento não
dá para pagar as despesas fixas previsíveis durante todo o ano, que a meio do
ano já não têm orçamento para pagar os medicamentos? Já olhou, com “olhos de
ver”, para os resultados financeiros anuais dos hospitais?
A propósito dos telefonemas que recebeu de um Presidente da
República por causa dos médicos, que tal revelar um dos telefonemas que
recebeu? Ou é segredo de Estado? Ou não será como diz?
Afinal reconhece que a dívida é um problema gerado pelos
Ministérios da Saúde e das Finanças. É óbvio que os suborçamentos crónicos e
acumulação de dívidas é uma má gestão política e económica. Relativamente aos
medicamentos e aos materiais clínicos não é verdade o que diz, nalguns casos
faltam mesmo e os atrasos que acontecem são inaceitáveis. A evidência é imensa.
Porque não mudou esta situação enquanto foi SES?
MD aponta o dedo aos médicos no incumprimento de horários
nas consultas e blocos operatórios, e cancelamentos de exames ou operações.
Para tentar justificar a incompetência dos gestores nomeados. Então como é
possível cumprir horários na consulta quando se têm doentes marcados à mesma
hora ou em tempos impossíveis de cumprir? Como é possível cumprir tempos no
bloco operatório quando a equipa multiprofissional não é escolhida nem está
formalmente dependente do cirurgião? Como é possível cumprir agendamentos
cirúrgicos quando são marcados doentes em excesso para o tempo disponível ou
não é possível operar por falta de material clínico ou avaria de equipamentos
(cada vez mais frequente)? MD desconhece a realidade, nada de novo!
Finalmente expõe o Ministério da Finanças, em vez dos
médicos. Que grande tormento! Sabe quem é o responsável político pela Saúde em
Portugal?
Sobre as Raríssimas não fizemos nem fazemos comentários.
Também não comentamos as suas preferências clubísticas. Mas não deixa de ser
curioso que, após ter dito tão mal dos médicos durante toda a entrevista,
termine referindo, a propósito das eleições para o SCP, como pessoas com
créditos firmados os médicos Eduardo Barroso e Daniel Sampaio. Ainda bem.
Miguel Guimarães
Bastonário da Ordem dos Médicos
Goste do Facebook da Ordem dos Médicos e receba
MANUEL DELGADO: "SOU DO TEMPO EM QUE SE FAZÍAMOS
UM REPARO AO MÉDICO FULANO DE TAL RECEBÍAMOS UM TELEFONEMA DO SENHOR PRESIDENTE
DA REPÚBLICA OU DE ALGUÉM DO GOVERNO"
17 ago 2018
É gestor e deixou o governo de forma abrupta, numa altura em que negociava
com os sindicatos as condições dos diversos profissionais do sector. Manuel
Delgado, ex-secretário de Estado da Saúde do PS, conta uma certa loucura que
vai pelos hospitais portugueses. E pelo Sporting também.
Pedro Marques / MadreMedia
É defensor acérrimo do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e acredita que o
principal problema do SNS não é a falta de dinheiro, é a falta de organização.
Diz que Portugal está a mudar e é preciso acompanhar essa mudança, criar
serviços de saúde domiciliários e alterar o modelo de contratação pública, a
mãe de todos os males.
Manuel Delgado, ex-secretário de Estado do actual governo, deixou o
Executivo e voltou para a empresa onde está desde 2010, quando pediu à ministra
Ana Jorge, governo Sócrates, para deixar a administração pública.
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Antes da IQVia, que avalia o desempenho dos hospitais através de uma
métrica objectiva e internacional, já conhecia a realidade in loco:
passou pelos conselhos de administração do Pulido Valente, dos Capuchos ou do
Curry Cabral. E foi presidente da Associação Portuguesa de Administradores
Hospitalares durante 16 anos.
Por ele passaram as negociações com todos os sindicatos da área da saúde:
de médicos a farmacêuticos, de fisioterapeutas a enfermeiros. "E não
estava a correr mal", garante. Mas veio o escândalo da Raríssimas e com
ele o seu pedido de demissão.
Ao longo desta conversa, quase toda sobre vícios médicos e problemas de
gestão, dois minutos para falar da mania do futebol. E das loucuras de Bruno de
Carvalho, que dava pontapés na parede e atirava garrafas de água pelo camarote
a baixo: "Um tipo evidentemente anormal".
As instituições de saúde hoje são mais geridas por médicos que por
gestores. Devia ser assim?
Diria que essa é uma questão decisiva. Quando olhamos para a organização do
Serviço Nacional de Saúde, tradicionalmente os médicos desempenham não só as
suas funções, como também as funções de decisão administrativa. Os médicos
decidem a constituição das equipas ou a chegada e saída de doentes em função
dos seus interesses e perspectivas, sem um interlocutor a quem prestar contas
sobre resultados. A medicina evoluiu, mas também evoluiu a organização dos
serviços médicos. Em alguns países a gestão das unidades de saúde é feita por
gestores profissionais, são eles que comandam toda a organização e
contratualizam com os médicos as responsabilidades do serviço prestado, com
avaliações periódicas de resultados.
"OS MÉDICOS FAZEM CURRÍCULOS EXCELENTES PARA APRESENTAR A CONCURSO,
MAS ISSO ÀS VEZES ESTÁ POUCO LIGADO COM A SUA CAPACIDADE DE TRABALHO"
Como é em Portugal?
As carreiras médicas são muito olhadas na perspectiva da capacidade clínica
de um médico e não tanto da produtividade ou do resultado do seu trabalho. Os
médicos fazem currículos excelentes para apresentar a concurso, mas
isso às vezes está pouco ligado com a sua capacidade de trabalho enquanto
empregado. A forma como os serviços estão organizados em Portugal precisaria
mesmo de uma volta de 180 graus.
Que volta seria essa?
Temos de dar mais impulso à componente gestionária, à avaliação de
resultados clínicos. Aliás, é isso que fazemos na IQVia: avaliamos resultados
clínicos por hospital, por serviço, por especialidade. Daí a chegar ao
desempenho de uma equipa médica é muito fácil, quer ao nível da qualidade clínica
do trabalho médico, das complicações, das taxas de mortalidade, de
reinternamentos, de salvamento e prolongamento de vidas, de medicamentos
prescritos, etc. Temos toda essa informação, o que é preciso agora é que
médicos, enfermeiros e gestores se debrucem sobre esses indicadores,
seleccionem o que é consensual e decidam como deve ser feita a avaliação.
"OS MÉDICOS, QUER QUEIRAMOS, QUER NÃO, LIDERAM A DESPESA NOS HOSPITAIS
E NOS SERVIÇOS DE SAÚDE"
O que seria feito com essa avaliação?
A avaliação tem de ter consequências para quem gere, mas, sobretudo para
quem é médico. Porque os médicos, quer queiramos, quer não, lideram a despesa
nos hospitais e nos serviços de saúde. É o médico que decide se o doente fica
internado ou vai para casa, se recebe um tratamento mais avançado ou mais
clássico, que é sete vezes mais económico, é ele que pede ou não exames
complementares. Estas decisões representam muito dinheiro, o médico tem, do
ponto de vista da despesa, a faca e o queijo na mão. Por isso temos de ter métricas
para avaliar a qualidade e a eficiência do desempenho médico, que devem ser,
não digo obrigatórias, mas orientadoras e basilares para remunerar médicos,
administrações e premiar os melhores. Isto não está a ser feito em Portugal. E
todos, mesmo a Ordem dos Médicos, quando falam na qualidade do desempenho
médico fazem-no de forma subjectiva. Seria importante implementar esta
avaliação, que tem de ser feita com a participação dos médicos.
"OS MÉDICOS TÊM O CONHECIMENTO E NÓS, GESTORES E POLÍTICOS, TEMOS DE
NOS ARTICULAR COM ELES PARA LHES EXIGIR PADRÕES DE COMPORTAMENTO"
créditos: Pedro Marques / MadreMedia
Porquê com a participação dos médicos?
Porque são quem tem o conhecimento científico e técnico para indicar as
métricas mais adequadas. Claro que temos informação de muitos países europeus e
sabemos o que é um bom resultado clínico para, por exemplo, um doente com um
AVC. É uma questão de analisarmos a casuística, o mix dos AVC em
Portugal, perceber os resultados e transpô-los para um serviço concreto. Se um
doente com um AVC fica 40 dias internado e o normal é 20, alguma coisa está
mal. Quem diz um AVC, diz uma fractura do colo do fémur. Porque é que uma
senhora ou um cavalheiro de 80 anos fica 15 dias internado num hospital? Não
pode ser, tem de ficar só cinco, a reabilitação tem de começar mais cedo.
Sabemos, e os médicos também sabem, quais são as práticas mais ajustadas a cada
situação clínica. Ou seja, os médicos têm o conhecimento e nós, gestores e
políticos, temos de nos articular com eles para lhes exigir padrões de
comportamento.
"OS GOVERNOS PERCEBEM QUE A CLASSE MÉDICA TEM ALGUMAS RAZÕES DE QUEIXA
HISTÓRICAS EM RELAÇÃO AO TRABALHO PÚBLICO"
Por que motivo não foi ainda implementado um sistema de avaliação?
Bom, então vou um pouco mais ao fundo da questão. Os médicos são uma classe
profissional muito especial no contexto nacional. O facto de lidarem com a vida
humana dá-lhes um ascendente de autoridade que nenhuma outra profissão tem.
Talvez o poder de um juiz, que pode decidir se uma pessoa vai para a cadeia 30
anos ou fica em liberdade, se possa assemelhar. Ainda assim, a vida humana é
mais profunda do que a liberdade. Além disso, os governos percebem que a classe
médica tem algumas razões de queixa históricas em relação ao trabalho público.
"O MESMO MÉDICO QUE GANHA 3500 NO PÚBLICO, GANHA 40 MIL NO
PRIVADO"
Quais?
Dou-lhe um exemplo comezinho: um médico de um hospital público pode chegar
ao fim da sua carreira como director de serviço, a ganhar, limpos, 3500 euros
por mês, quando muito 4 mil euros. Acha que faz sentido, quando lideram o
ranking das remunerações e da qualidade de vida? Não faz, porque o mesmo médico
que ganha 3500 no público, ganha 40 mil no privado. Quando digo que têm razões
de queixa históricas, estou a dizer que quando foi feita a nacionalização dos
serviços de saúde os médicos que trabalhavam em misericórdias, nos serviços
sociais, no Ministério da Solidariedade Social, na altura Ministério do
Trabalho, passaram a incorporar os quadros dos serviços públicos - na medicina
geral e familiar, na saúde pública, na medicina do trabalho, nos hospitais - e
as suas remunerações foram niveladas por baixo porque o Estado não tinha, e
continua a não ter, capacidade financeira para pagar ordenados
equivalentes aos que se pagam no sector privado.
"A ORDEM DOS MÉDICOS E OS SINDICATOS FALAM MUITO EM BURNOUT, OS
MÉDICOS ESTÃO ESGOTADÍSSIMOS. MAS ESSE ESGOTAMENTO NÃO DERIVA DO TRABALHO
PÚBLICO, PROVAVELMENTE DERIVA DA ACUMULAÇÃO DE TAREFAS EM VÁRIOS SÍTIOS"
Como faz o sector privado para conseguir pagar essa diferença salarial?
Os médicos que trabalham no sector privado não têm contratos de trabalho
fixos e permanentes. Quando não fazem falta, não ganham. O recrutamento passa
por um pagamento por acto médico: não produz, não ganha. No Estado não é assim,
e esta é uma questão importante que tem de ser dita com alguma clareza: o
trabalho médico no sector público não é rentabilizado ou é muito pouco
rentabilizado. A Ordem dos Médicos e os sindicatos falam muito em burnout,
os médicos estão todos muito cansados, esgotados, esgotadíssimos. Mas esse
esgotamento não deriva do trabalho público, provavelmente deriva da acumulação
de tarefas em vários sítios. Não me venham dizer que um horário de 40 horas num
hospital é carga pesada, quando verificamos que muitos médicos não têm trabalho
que justifique esse horário, fazem menos do que estava previsto no seu horário
de trabalho, às vezes até por razões que não lhes são atribuíveis. Imagine um
grande hospital que ali concentra a ortopedia, o bloco operatório não tem
capacidade para aceitar que todos os seus ortopedistas operem sequer uma vez
por semana.
Por que razão não se altera a forma como o público contrata?
Porque o modelo de contratação médica no serviço público é um modelo muito
rígido.
Pode ou não mudar?
É importante que se faça essa alteração. Mas, aqui sim, necessitamos de um
consenso entre governo e partidos políticos, por um lado, e da corporação,
sindicatos e Ordem dos Médicos, por outro. E a mudança deve passar por dois
vectores essenciais: primeiro, não se pode pagar a um médico por horas de
trabalho, deve-se pagar por trabalho realizado. Horas de trabalho é dizer que o
médico trabalha 40 horas por semana. Ou seja, senta-se na cadeira e lê "A
Bola" ou liga o computador e vê a sua vida pessoal e está a trabalhar,
teoricamente. Para ser rentabilizado o trabalho tem de ser medido em função dos
seus resultados: em 40 horas semanais quantas cirurgias faz um cirurgião geral?
Qual a taxa de sucesso? Qual a taxa de complicações dos doentes que operou?
Quando é que os seus doentes têm alta? Se dá alta ao sexto dia e a
média do hospital é ao quarto dia, tem uma diferença de dois dias que
é preciso resolver.
"O TEMPO DE INTERNAMENTO NÃO É UMA QUESTÃO DE SOMENOS E NEM DE
ECONOMICISMO, É DE BOM SENSO E DE RESPONSABILIDADE"
Essa não é uma lógica demasiado economicista?
Não. A questão é que
se um recurso, como uma cama, está ocupado mais tempo do que é preciso, há
doentes que vão ficar sem esse recurso. Por outro lado, e este é um problema
real da sociedade portuguesa e dos nossos hospitais, quanto mais tempo os
doentes ficam internados, mais susceptíveis estão a uma infecção hospitalar.
Outro dia um amigo foi operado à coluna por causa de um acidente e ao terceiro
dia estava com uma infecção. Teve alta mais tarde não por causa da cirurgia,
mas por causa da infecção. O tempo de internamento não é uma questão de somenos
e nem de economicismo, é de bom senso e de responsabilidade.
Quantos médicos tem o Serviço Nacional de Saúde?
O SNS terá cerca de 22 mil médicos. Se tirar os 7 mil médicos da medicina
geral e familiar, os chamados médicos de família, tem entre 14 mil e 15 mil
médicos nos hospitais. Profissionais de saúde são cerca de 140 mil.
"UM MÉDICO DE FAMÍLIA TEM 1500 PESSOAS SOB A SUA ALÇADA. NÃO TEM TEMPO
PARA ELES, MAS TEM TEMPO PARA IR GANHAR 12 HORAS DE URGÊNCIA AO HOSPITAL DE
VISEU"
Há pouco disse que o burnout não era por os médicos
estarem no seu posto de trabalho. Quem é que faz ganchos fora?
Todos fazem. O que é curioso é que os médicos de família também fazem
perninhas fora. Uma das perninhas é fazer bancos de urgência nos hospitais
públicos. Um médico de família tem 1500 pessoas sob a sua alçada. Pois bem, não
tem tempo para os 1500 utentes, mas tem tempo para ir ganhar 12 horas de
urgência ao hospital de Viseu, por exemplo. Acha isto normal?
"NÃO TEMOS NENHUMA RAZÃO PARA TER CERCA DE 7 MILHÕES DE URGÊNCIAS POR
ANO NOS HOSPITAIS"
Por que motivo os hospitais públicos alimentam isso?
Porque isto é um círculo vicioso em que a escassez de médicos nos hospitais
faz com que se façam todas as tropelias para ter médicos a trabalhar no
hospitais. Então vamos recrutar o clínico geral que está no centro de saúde e
tem os seus 1500 utentes para fazer uma perninha no hospital 12 horas por
semana. E quem diz 12 horas, diz 24 horas. Isto é mau. Focamo-nos
muito nas urgências – e não temos nenhuma razão para ter cerca de 7 milhões de
urgências por ano nos hospitais. É um lastro histórico, uma cultura instalada;
quando espirro ou tenho uma gripe vou à urgência do hospital. Este é um
problema do ponto de vista económico-financeiro e do ponto de vista da
qualidade do serviço, porque as urgências da medicina não têm a mesma
capacidade reflexiva sobre a situação da saúde da pessoa.
Os centros de saúde são alternativa, dão resposta às necessidades das
pessoas?
A medicina geral e familiar evoluiu em Portugal com a criação das Unidades
de Saúde Familiares (USF), que são modelos em que os médicos, enfermeiros e
equipas administrativas constituem uma pool autogerida, com melhores
remunerações. É por isso que a classe médica quer passar toda para USF, não é
só pelo interesse do utentes, é pelo interesse pessoal. Se posso ganhar mais
40% se o meu centro de saúde passar de cuidados personalizados para USF, porque
não hei-de reivindicar a passagem a USF?
A diferença de remuneração entre uns e outros reflecte-se no serviço
prestado?
Esse é um problema, saber se as diferenças nas remunerações que se praticam
se justificam, se têm adequação e são proporcionais às vantagens. Há uma
métrica de avaliação em que se associam muitos aspectos de natureza de
acompanhamento de saúde, como por exemplo medir a tensão arterial, controlar os
doentes diabéticos, os doentes com insuficiência cardíaca, a obesidade, a
grávida. Uma série de indicadores medidos em função do desempenho com esses
doentes, majorados, sobretudo, em função da idade dos doentes: uma criança até
aos cinco anos vale mais do que um cidadão com 15 anos do ponto de vista do
trabalho que dá, como uma pessoa com mais de 70 anos dá mais trabalho que uma
de 30 anos. Mas isto não é suficiente, há pessoas com 70 anos e uma saúde de
ferro. As USF foram um avanço, tal como o aumento do número de médicos de
medicina geral e familiar, que com este governo foi brutal – reduziram-se para
quase metade o número de cidadãos sem médico. Mas que ganhos que isto trouxe no
fim do dia?
"SE A RESPOSTA DA MEDICINA GERAL E FAMILIAR FOSSE MAIS EFICAZ, SERIA
EXPECTÁVEL QUE TIRÁSSEMOS 30% A 40% DAS PESSOAS DAS URGÊNCIAS, MAS NADA DISTO
ESTÁ A ACONTECER"
O número de pessoas que recorrem às urgências tem diminuído?
Essa seria uma das formas de medir o êxito, saber se o número de
utentes que vão às urgências baixou. Se sabemos que a maior parte das pessoas
que vai às urgências o faz por questões de natureza geral, sem grande
complexidade do ponto de vista clínico, e se há mais médicos de família, por
que razão é que as pessoas continuam a ir às urgências? O argumento que se
apresenta é que as pessoas têm achaques e vão aos centros de saúde onde lhes
dizem que só têm consulta dali a 15 dias, quando elas estão com febre é naquele
dia. Se a resposta da medicina geral e familiar fosse mais eficaz, seria
expectável que tirássemos 30% a 40% das pessoas das urgências, mas nada disto
está a acontecer.
Qual seria a maneira de tirar essas pessoas das urgências, a linha Saúde 24
veio ajudar?
Sou favorável à linha Saúde 24, ao contrário de uma corrente na área médica
que a queria fechar, com o argumento de que era um logro, que não se fazem
consultas médicas por telefone. A linha Saúde 24 não faz consultas por
telefone, pede informações aos utentes sobre sintomas e, em função de
algoritmos obtidos por enfermeiros altamente preparados, definem um risco e
complexidade que sugerem o que se deve fazer. A linha Saúde 24 faz orientação
médica e faz bem, penso isto até como utilizador. Mas não chega.
"A REFORMA DA SAÚDE JÁ DEVIA TER SIDO FEITA E TEM DE SER FEITA COM
ALGUMA URGÊNCIA"
Quantos médicos tem o Serviço Nacional de Saúde?
O SNS terá cerca de 22 mil médicos. Se tirar os 7 mil médicos da medicina
geral e familiar, os chamados médicos de família, tem entre 14 mil e 15 mil
médicos nos hospitais. Profissionais de saúde são cerca de 140 mil.
"UM MÉDICO DE FAMÍLIA TEM 1500 PESSOAS SOB A SUA ALÇADA. NÃO TEM TEMPO
PARA ELES, MAS TEM TEMPO PARA IR GANHAR 12 HORAS DE URGÊNCIA AO HOSPITAL DE
VISEU"
Há pouco disse que o burnout não era por os médicos
estarem no seu posto de trabalho. Quem é que faz ganchos fora?
Todos fazem. O que é curioso é que os médicos de família também fazem
perninhas fora. Uma das perninhas é fazer bancos de urgência nos hospitais públicos.
Um médico de família tem 1500 pessoas sob a sua alçada. Pois bem, não tem tempo
para os 1500 utentes, mas tem tempo para ir ganhar 12 horas de urgência ao
hospital de Viseu, por exemplo. Acha isto normal?
"NÃO TEMOS NENHUMA RAZÃO PARA TER CERCA DE 7 MILHÕES DE URGÊNCIAS POR
ANO NOS HOSPITAIS"
Por que motivo os hospitais públicos alimentam isso?
Porque isto é um círculo vicioso em que a escassez de médicos nos hospitais
faz com que se façam todas as tropelias para ter médicos a trabalhar no
hospitais. Então vamos recrutar o clínico geral que está no centro de saúde e
tem os seus 1500 utentes para fazer uma perninha no hospital 12 horas por
semana. E quem diz 12 horas, diz 24 horas. Isto é mau. Focamo-nos
muito nas urgências – e não temos nenhuma razão para ter cerca de 7 milhões de
urgências por ano nos hospitais. É um lastro histórico, uma cultura instalada;
quando espirro ou tenho uma gripe vou à urgência do hospital. Este é um
problema do ponto de vista económico-financeiro e do ponto de vista da qualidade
do serviço, porque as urgências da medicina não têm a mesma capacidade
reflexiva sobre a situação da saúde da pessoa.
Os centros de saúde são alternativa, dão resposta às necessidades das
pessoas?
A medicina geral e familiar evoluiu em Portugal com a criação das Unidades
de Saúde Familiares (USF), que são modelos em que os médicos, enfermeiros e
equipas administrativas constituem uma pool autogerida, com melhores
remunerações. É por isso que a classe médica quer passar toda para USF, não é
só pelo interesse do utentes, é pelo interesse pessoal. Se posso ganhar mais
40% se o meu centro de saúde passar de cuidados personalizados para USF, porque
não hei-de reivindicar a passagem a USF?
A diferença de remuneração entre uns e outros reflecte-se no serviço prestado?
Esse é um problema, saber se as diferenças nas remunerações que se praticam
se justificam, se têm adequação e são proporcionais às vantagens. Há uma
métrica de avaliação em que se associam muitos aspectos de natureza de
acompanhamento de saúde, como por exemplo medir a tensão arterial, controlar os
doentes diabéticos, os doentes com insuficiência cardíaca, a obesidade, a
grávida. Uma série de indicadores medidos em função do desempenho com esses
doentes, majorados, sobretudo, em função da idade dos doentes: uma criança até
aos cinco anos vale mais do que um cidadão com 15 anos do ponto de vista do
trabalho que dá, como uma pessoa com mais de 70 anos dá mais trabalho que uma
de 30 anos. Mas isto não é suficiente, há pessoas com 70 anos e uma saúde de
ferro. As USF foram um avanço, tal como o aumento do número de médicos de
medicina geral e familiar, que com este governo foi brutal – reduziram-se para
quase metade o número de cidadãos sem médico. Mas que ganhos que isto trouxe no
fim do dia?
"SE A RESPOSTA DA MEDICINA GERAL E FAMILIAR FOSSE MAIS EFICAZ, SERIA
EXPECTÁVEL QUE TIRÁSSEMOS 30% A 40% DAS PESSOAS DAS URGÊNCIAS, MAS NADA DISTO
ESTÁ A ACONTECER"
O número de pessoas que recorrem às urgências tem diminuído?
Essa seria uma das formas de medir o êxito, saber se o número de
utentes que vão às urgências baixou. Se sabemos que a maior parte das pessoas
que vai às urgências o faz por questões de natureza geral, sem grande
complexidade do ponto de vista clínico, e se há mais médicos de família, por
que razão é que as pessoas continuam a ir às urgências? O argumento que se
apresenta é que as pessoas têm achaques e vão aos centros de saúde onde lhes
dizem que só têm consulta dali a 15 dias, quando elas estão com febre é naquele
dia. Se a resposta da medicina geral e familiar fosse mais eficaz, seria
expectável que tirássemos 30% a 40% das pessoas das urgências, mas nada disto
está a acontecer.
Qual seria a maneira de tirar essas pessoas das urgências, a linha Saúde 24
veio ajudar?
Sou favorável à linha Saúde 24, ao contrário de uma corrente na área médica
que a queria fechar, com o argumento de que era um logro, que não se fazem
consultas médicas por telefone. A linha Saúde 24 não faz consultas por
telefone, pede informações aos utentes sobre sintomas e, em função de
algoritmos obtidos por enfermeiros altamente preparados, definem um risco e
complexidade que sugerem o que se deve fazer. A linha Saúde 24 faz orientação
médica e faz bem, penso isto até como utilizador. Mas não chega.
"A REFORMA DA SAÚDE JÁ DEVIA TER SIDO FEITA E TEM DE SER FEITA COM
ALGUMA URGÊNCIA"
Tem a ver com a falta de estruturas de resposta. A primeira medida a
implementar, do ponto de vista estratégico e custe o que custar, é olhar
preferencialmente para a pessoa idosa e fazer uma antecipação e o controlo das
suas doenças. Isto não se faz nos hospitais, faz-se em casa. Aliás, aproveito
para dizer o seguinte: o que vemos muitas vezes em lares de terceira idade são
situações dantescas do ponto de vista clínico, sem assistência médica, às vezes
sem enfermagem adequada. Não diria que os doentes são maltratados, mas são
negligenciados. Era melhor que estes utentes estivessem sinalizados na rede
pública e estivessem no seu domicílio, se não com apoio da família, com apoio
dos chamados cuidados informais.
"ISTO IMPLICA UMA VIRAGEM MUITO GRANDE NO SISTEMA, QUE DEVE SER MUITO
MENOS HOSPITALOCÊNTRICO E MUITO MAIS VIRADO PARA AS PESSOAS NA COMUNIDADE"
Porque é que isso não acontece?
Porque em Portugal caímos sempre na armadilha de institucionalizar a saúde,
de tratar a saúde em instituições. Outro erro. Começou nos anos 70, com a ideia
do centro de saúde e de urgência hospitalar, e nunca montámos - é uma pecha
nacional histórica - serviços de proximidade a sério, que implicam viaturas,
disponibilidade das pessoas, horários de trabalho flexíveis. Mas há casos. A
presidente da Câmara Municipal de Alfândega da Fé, que é médica, montou com os
serviços de saúde - porque isto implica uma grande articulação entre serviços
de saúde e serviços camarários, que têm a elasticidade e o conhecimento da vida
das pessoas - uma rede de apoio domiciliário. A senhora dona Joaquina não tem
nenhum problema especial, a não ser os dez comprimidos que tem de tomar todos
os dias. Então, há uma enfermeira e uma auxiliar que vão a casa ver se tomou os
comprimidos como deve. Isto foi feito com o dinheiro da câmara e com
o apoio dos profissionais de saúde dos centros de saúde. A saúde tem de se pôr
a jeito para isso, porque isto é importante, é assim que se montam esquemas
simples, funcionais e resolutivos. Se calhar a senhora dona Joaquina tomava os
medicamentos de qualquer maneira, ou não os tomava, e, por isso, ia parar ao
centro de saúde ou ao hospital. Tudo isto implica uma viragem muito grande no
sistema, que deve ser muito menos hospitalocêntrico e muito mais virado para as
pessoas na comunidade.
Isso resolveria uma parte do problema dos hospitais, mas essas não são as
únicas pessoas a recorrer aos hospitais.
Agora vamos à questão hospitalar – e basta a agressividade das doenças da
moda, como o cancro ou doenças infecciosas como o HIV ou a Hepaticte C, as
doenças cardíacas, as doenças pulmonares severas. Temos no espectro
populacional dos utilizadores dos hospitais duas gamas de pacientes: o que
precisa mesmo de estar no hospital e o que o utiliza porque tem doença crónica.
É este último que não precisa nada de ir ao hospital, pode ser atendido em
casa. Se conseguirmos tirar esta população do hospital e dar-lhe resposta no
domicílio estamos a poupar muitos recursos aos Estado e a melhorar serviço, a
libertar camas, consultas e, sobretudo, a aliviar os serviços de urgência. Com
menos doentes os hospitais podem respirar um bocadinho e veríamos que as camas
que existem são suficientes.
Ficar em casa implica uma organização familiar e recursos financeiros que,
muitas vezes, as pessoas não têm.
É por isso que temos de ter equipas montadas no terreno e é também por isso
que é preciso o apoio de municípios, da Segurança Social para montar essas
equipas. Muitas câmaras já o fazem ao nível da alimentação, da limpeza de
domicílio, dos cuidados de higiene diária. E fazem-no bem. O utente paga muito
pouco e se não tem condições económicas não paga nada. A minha mãe tem 92 anos
e fracturou um pé, está em Chaves, em casa do meu irmão, e pedimos apoio para
ela à Santa Casa da Misericórdia. Pagamos um valor mensal e vão lá uma ou duas
senhoras fazer a sua higiene e ver se as coisas estão a correr bem. Se não
pudéssemos pagar, provavelmente, a Santa Casa faria isto gratuitamente. Há uma
rede de valências que têm de estar associadas, não pode ser só a saúde a resolver
o problema da idade e do envelhecimento. A doença crónica exige não
só medicamentos, tratamentos, mas também apoio social. A psicologia, a
assistência social são componentes indispensáveis neste processo, sem esquecer
uma componente fundamental, a reabilitação. Não temos em Portugal,
infelizmente, serviços de reabilitação ao pé da porta. Temos três grandes
centros de reabilitação: um no Norte, em Gaia, um na zona da Figueira da Foz e
um em Alcoitão. E temos outro ligado ao Centro Hospitalar do Algarve, em São
Brás de Alportel, que visitei várias vezes e tem excelentes instalações. Foi
adjudicado em PPP e funcionava lindamente, até ao dia em que o Tribunal de
Contas disse que o concurso foi mal feito, o privado teve de sair em 15 dias e
o centro foi entregue à ARS do Algarve.
Passou a funcionar mal?
Funciona como pode. A maior parte das pessoas não tinham contrato de
trabalho e o Estado não as conseguiu incorporar nos quadros. Foram-se embora.
Para ter uma noção: o Centro de Reabilitação de São Brás de Alportel baixou
para 50% a actividade que tinha, as camas estão vazias, fecharam as portas de
algumas alas do centro.
Por que motivo não replicaram o modelo anterior?
Não se pode. O modelo parceria público-privada (PPP) é um modelo tipo chave
na mão, as contratações de enfermeiros, de fisioterapeutas são feitas como se
quiser. Quando passa para o modelo público, o Estado tem um custo de transição,
designadamente em matéria de recursos humanos, brutal. Não só deixa de poder
contratar como quer - há regras e quotas para admissão de pessoal, os custos
têm de estar no orçamento do Estado e o Ministério das Finanças tem de aceitar
a despesa -, como as pessoas ficam em regime precário e ao fim de pouco tempo
vão-se embora.
"OS PROFISSIONAIS E AS CORPORAÇÕES ÀS VEZES BARAFUSTAM MUITO, MAS NÃO
QUEREM MUDAR O ESSENCIAL"
Voltamos sempre ao modelo de contratação do Estado. Pode ou não ser
alterado?
É possível, mas exige uma discussão e uma aposta firme nesse projecto, tem
de haver predisposição política para entrar num processo negocial duro,
complexo. Evidentemente, os profissionais e as corporações às vezes barafustam
muito, mas não querem mudar o essencial. Já disse que o modelo de assistência
de prestação de cuidados precisa de ser profundamente revisto e ao fazer esta
revisão vamos tocar interesses ou, para não usar palavras muito violentas,
algumas comodidades. Ao atingir estas comodidades estamos a pedir
às pessoas para mudar de vida: por favor, mude o seu comportamento,
venha trabalhar de manhã e venha também trabalhar à tarde. Se não quiser vir de
manhã, venha só de tarde, mas até às oito da noite. Isto exige uma revolução de
natureza cultural na cabeça de todos. A Ordem dos Médicos nunca fala nisto e
tem de começar a falar. Não basta dizer que não há investimento, não há isto e
aquilo. Pergunto: façamos esse investimento todo, e temos feito algum, as
coisas melhoram? Não. Um parêntesis para dizer que o Serviço Nacional de Saúde,
no essencial, responde bem e dá cartas na Europa. Penso que temos recursos
suficientes para fazer uma medicina de qualidade, que fazemos, mas temos de ser
mais eficientes.
"HÁ VALÊNCIAS ONDE O NÚMERO DE ESPECIALISTAS É EXCESSIVO PARA AS
NECESSIDADES DO PAÍS, MAS O QUE É CURIOSO É QUE O ESTADO OS VAI
ABSORVENDO"
É isso que faz com que um hospital como o Hospital da Luz apresente bons
resultados e os hospitais públicos não?
Há uma questão decisiva para isso, o número de efectivos que trabalha na
Luz é menos de metade, para não dizer um terço, do número de efectivos que
trabalha num hospital público da mesma dimensão. Por vezes ficamos
surpreendidos quando olhamos para um hospital e vemos num serviço 40, 30 ou 20
especialistas... É claro que depois temos áreas onde há falhas, como em
anestesiologia, radiologia, dermatologia ou reumatologia, enquanto outras, como
cirurgia geral, têm médicos a mais. Ou seja, há valências onde o número de
especialistas é excessivo para as necessidades do país, mas o que é curioso é
que o Ministério da Saúde e o Estado os vai absorvendo.
Se não tem necessidade, porque os contrata?
Por uma razão muito simples, que é também um lastro histórico que deve ser
quebrado: quando um estudante de medicina acaba o curso, o Estado garante-lhe
emprego. O aluno de medicina acaba o curso e quando entra no primeiro ano de
formação prática, o estágio, é remunerado. Depois nunca mais sai do sistema,
porque o Estado preocupa-se com os profissionais que vai formando. E vai-lhes
pagando. Tudo isto são custos brutais para o sistema, que os privados não têm.
Há largas centenas de novos médicos por ano a entrar para a formação básica e
que depois, com base em concursos sucessivos, passam do estágio para o ano
comum, para especialidade e já não saem mais. Alguns já não querem entrar,
ficam a fazer ganchos. E há outro pormenor: quando o médico acaba a
sua formação muitas vezes abandona o Estado e vai para o privado. E coloca-se a
questão: quem é que pagou a formação? É como os pilotos de aviação formados na
Força Aérea Portuguesa e que vão para a TAP ou outra companhia de aviação.
Podem? Sim, se indemnizarem a Força Aérea. Também há clubes de futebol que ao
fim de 15 anos ainda estão a receber dinheiro pela transacção do jogador, que
foi formado, por exemplo, na Academia de Alcochete. Isto parece-me um princípio
saudável, não matar os que se empenham na formação médica, não dar cabo da
galinha dos ovos de ouro.
"TEMOS DE DAR AO ESTADO A FACULDADE DE DIZER AOS MÉDICOS QUE FORMOU
QUE SÓ PODEM IR PARA O PRIVADO SE CUMPRIREM XIS ANOS DE SERVIÇO PÚBLICO, CASO
CONTRÁRIO TERÃO DE PAGAR UMA INDEMNIZAÇÃO AO ESTADO"
Não sei como é agora, mas há uns anos, em algumas licenciaturas, quando se
recebia uma bolsa de estudo estatal ficava-se obrigado a trabalhar para o
Estado durante uns anos.
É esse modelo que temos de implementar. Temos de dar ao Estado a faculdade
de dizer aos médicos que formou que só podem ir para o privado se cumprirem xis
anos de serviço público, caso contrário terão de pagar uma indemnização ao
Estado. Penso que isto seria perfeitamente aceitável, até do ponto de vista
ético e moral. Voltando à questão médica: em Portugal não temos falta de
médicos, é um erro falar-se em falta de médicos. O que temos médicos mal
distribuídos do ponto de vista geográfico – ninguém quer ir para o Algarve, o
que acho um absurdo, contado lá fora ninguém acredita. Qual é a profissão em
Portugal em que os seus membros se dão ao luxo de rejeitar lugares? A sensação
é de que há pleno emprego, a não ser que a pessoa seja masoquista e queira
viver de esmolas.
Porque não existe uma penalização para quem rejeita?
A verdade é que quando um jovem médico recusa ir para o Algarve ele tem,
provavelmente, uma solução de retaguarda, possivelmente fazer ganchos a correr
urgências. E isto é preocupante e tem de ter um ponto de ruptura, tem de se
quebrar este mecanismo habilidoso. A ruptura passa por um médico ser obrigado a
aceitar o lugar quando entra num concurso ou então indemnizar o Estado por
rejeitar a vaga. Ou, por exemplo, não poder voltar a candidatar-se a uma
vaga nos anos seguintes. Em Portugal temos uma tolerância excessiva.
"TEMOS AS COSTAS QUENTES E SABEMOS QUE OS MÉDICOS ESTÃO DISPONÍVEIS
PARA TRABALHAR POR 3 MIL EUROS PORQUE TOLERAMOS QUE FAÇAM PRIVADA, QUE LHES DÁ
DIREITO A MAIS 14 MIL"
As pessoas compreendem que um governo não mude tudo o que está mal, o que
não compreendem é que não mude pelo menos alguma coisa. Os problemas na saúde
persistem sem que alguém faça alguma coisa. Porquê?
A questão do corporativismo, comum a outras profissões, é mais extrema
aqui. Como já disse, estamos perante uma profissão com muito poder. É um poder
excessivo - nas outras sociedades europeias os médicos não têm o ascendente
social que têm em Portugal... Mas, vamos até admitir que é aceitável, a
medicina portuguesa é de alta qualidade, temos excelentes médicos, que dão
cartas em qualquer país do mundo: porque é que o Estado está relativamente
paralisado nesta matéria? Porque o Estado e os governos têm medo de começar a
mexer nos interesses, não direi espúrios, porque têm sempre alguma
legitimidade, mas têm medo de mexer nesta amálgama. Porque começam a puxar o
arame e vem muita coisa agarrada. Uma das coisas que vem agarrada é: como é que
o Estado quer exclusividade se paga aos médicos 2 mil ou 3 mil euros por mês?
Ninguém que passou 12 anos para ser médico está disponível para receber estes
valores. Temos as costas quentes e sabemos que os médicos estão disponíveis
para trabalhar por 3 mil euros porque toleramos que façam privada, que lhes dá
direito a ganhar mais 14 mil. E fechamos os olhos ao incumprimento de horário,
à baixa produtividade. É um caldo difícil de mexer. No dia em que se chamar a
atenção para isso vem a pergunta: "Então e como é que o senhor ministro
resolve a questão dos salários?"
E como é que o ministro pode resolver a questão dos salários?
Há uma forma de resolver, que é reduzir substancialmente o quadro do
Serviço Nacional de Saúde e ficar com um conjunto de médicos que façam todo o
trabalho necessário ao SNS sem estar a olhar para o relógio à espera de ir
fazer umas coisas no seu consultório particular ou uma operação na clínica
ípsilon. Se tiver capacidade para ter um núcleo duro de médicos que façam o
trabalho todo, porque são competentes, pago-lhes bastante bem, porque vou
dispensar os que estão a mais. Ou pego nos que estão a mais em certos sítios e
vou distribuí-los pelo território nacional onde fazem falta. É bom
ter a noção de que estas coisas só se resolvem com medidas de ruptura, ruptura
face a uma produtividade baixa, levantamento do número de efectivos versus
necessidades reais, uma dinâmica de promoção de bom desempenho,
de efectividade e eficiência.
créditos: Pedro Marques / MadreMedia
Qual a verba destinada à saude pública?
Atribuímos no orçamento do Estado para o SNS cerca de 9,5 mil milhões de
euros. Uma coisa curiosa, e que pode servir para batota, como fez a direita, é
que este montante é o orçamento inicial. Quando olhamos retrospectivamente, a
verba aumenta entre 500 e 600 milhões de euros. Ou seja, de 9,5 mil milhões
passa para 10,3 mil milhões, à vontade. Quando a oposição faz análises da
despesa em saúde diz: o orçamento de 2018 baixou em relação ao ano anterior. Só
que não, eles estão a comparar resultados de um ano com previsões do ano
seguinte e isso é batota. Outra coisa curiosa: o ministro Paulo Macedo tinha
como previsão de fecho de contas um défice de 30 milhões de euros para o final
de 2015. Sabe qual foi o número final? Um défice de 260 milhões de euros.
Neste momento em quanto está?
Está nos 230 a 250 milhões. Quero deixar claro que as minhas críticas ao
Serviço Nacional de Saúde são para explicar até que ponto é preciso adaptar o
serviço às alterações, que não são pequenas, de natureza socio-demográfica. A
população portuguesa mudou muito em termos de localização geográfica, estrutura
etária, formação educacional. Hoje as pessoas são mais informadas, mais
instruídas, mais exigentes, não querem ir para os hospitais comer numa malga de
alumínio batida nas paredes e toda amolgada, como era quando comecei a
trabalhar nos hospitais. Ainda me lembro dos carros de comida a atravessar os
corredores do Hospital de São José e a sopa, que vinha em grandes panelões, a
entornar-se no chão. Há um processo adaptativo permanente e o SNS, apesar de
tudo, tem feito esse esforço e esse caminho.
Já temos a receita, falta aplicá-la.
É um processo muito difícil. A maior parte dos médicos, ou uma grande
parte, está no quadro, tem a sua carreira e tem direitos. Os sindicatos caem
logo em cima do governo. Quebrar o tal ascendente social é difícil para
qualquer governo, aliás, costuma dizer-se que tomar decisões políticas contra
os médicos é meio caminho andado para a demissão do ministro, quando não para a
queda do governo. Já tivemos situações de ruptura em Portugal em que
o governo perdeu eleições pela área da saúde e por causa da luta contra o
ministro da Saúde.
De que se queixam os médicos?
Falta de investimento, falta de recursos modernizados, falta de obras na
estrutura, falta de mais médicos. Nunca é um argumentário em que olham para
dentro de si, fazem autocrítica e vêem se podem dar um pouco mais, estar
integrados de outra forma. A Ordem dos Médicos não pensa nisso. E o que têm de
fazer é olhar primeiro para os recursos que têm e organizar-se. Imagine um
serviço de pediatria ou um serviço de cirurgia com 25 médicos - e há-os. Por
que razão entram todos às oito da manhã? Porque não entram uns às oito, outros
às 11 horas? Se eu tiver um restaurante com 30 empregados distribuo-os pelos
turnos do almoço e do jantar. Os recursos humanos que são a pedra de toque dos
custos, algo que oscila entre os 45% e os 50%. Se não forem bem geridos é por
aí que a despesa se vai. Se conseguir fazer com que uma equipa de 25 pediatras
ou 25 cirurgiões se distribuam melhor no tempo ao longo do dia de trabalho,
tenho mais rentabilidade, trato muito mais doentes, poupo ao hospital ou recebo
mais. O hospital é pago em função dos doentes que trata. Uma vez, num hospital
de que fui presidente do conselho de administração, fui confrontado com a falta
de médicos - não digo a especialidade para não denunciar o hospital. Sabe o que
me disseram? "Ó senhor presidente, a partir das duas da tarde já temos de
ter urgência interna". A urgência interna é um médico de plantão no
serviço quando já não há médicos a trabalhar no hospital.
A partir das duas da tarde já não havia médicos?!
Essa foi a questão que eu coloquei. A partir das duas da tarde?! Ou seja,
os médicos tinham uma escala de urgência interna das duas da tarde às oito da
manhã do dia seguinte. Isto nos dias de semana, não era aos sábados, domingos e
feriados. Eu, que até sou simpático, não gosto de ser muito combativo,
perguntei: "Mas porque é que os senhores não se distribuem de outra forma
ao longo do dia? Pelo menos até às 18 horas, quer dizer..." Porque por lei
a urgência interna começa às 20 horas.
Volto à pergunta inicial: porque não se põe cobro a esses
comportamentos?
A grande diferença entre um hospital e uma equipa normal é que num hospital
as equipas médicas são autogeridas. Os médicos gerem os seus próprios horários,
a distribuição do tempo de trabalho, do tempo de bloco, etc. E este modelo tem
de dar lugar a um modelo mais participativo da administração e dos seus
representantes. E dou-lhe um exemplo muito comezinho, mas que ilustra a
questão: ao analisar uma urgência hospitalar consigo perceber os ritmos de
trabalho ao longo do dia e até ao longo da semana: segunda-feira há um pico,
durante a semana tenho uma procura reduzidíssima dos serviços de urgência entre
a meia-noite e as oito da manhã, das oito da manhã às nove e meia/dez horas
começa a subir e atinge novo pico entre as onze horas/meio-dia e as duas da
tarde, após o que volta a baixar. Vêm as notícias e as novelas fica tudo calmo,
acabam as notícias e as novelas e há novo pico entre as 22 horas e a
meia-noite. Isto está nos livros, é geral em todo o país. Se é assim, porque é
que as cargas de trabalho médico são iguais ao longo do dia, quando sabemos que
há uma variabilidade automática? Não faz sentido nenhum. São perguntas de
lana-caprina. E tem razão quando pergunta porque é que não se resolve: é porque
dá um trabalhão enorme e há uma oposição brutal dos médicos a qualquer
intervenção administrativa.
"ACREDITO QUE OS MÉDICOS VÃO PERCEBER MAIS TARDE OU MAIS CEDO QUE NÃO
PODEMOS ESTAR SEMPRE A ACOMODAR OS VÍCIOS, OS PEQUENOS INTERESSES"
Sabemos que há doentes em macas nos corredores dos hospitais, crianças a
fazer quimioterapia sem as condições mínimas, operações canceladas. Os utentes
não merecem uma explicação?
Eu sou apologista dessa atitude, mas às vezes há quem não seja. Quando as
coisas são desagradáveis temos de saber explicá-las, assumir a coragem de ir em
frente e tentar encontrar aliados na população, também nos médicos, mas
sobretudo na população. E acredito que os médicos sejam sensíveis a isso, vão
perceber mais tarde ou mais cedo que não podemos estar sempre a acomodar os
vícios, os pequenos interesses. Outro exemplo: porque é que os médicos fazem 24
horas de banco? Não é por necessidade, é por conveniência. As escalas de
enfermagem na urgência são diferentes, são em períodos de oito horas. Há um
turno de enfermeiros que faz oito horas, sai, entra outro e depois outro.
Geralmente é das oito às quatro, das quatro à meia-noite e da meia-noite
às oito. Parece-me razoável. Mas os médicos fazem 24 horas seguidas. Uma vez
fui confrontado com um médico que me disse: "Acha que um médico está
disponível para vir trabalhar oito horas e passados três dias mais oito horas e
passados mais três dias outras oito horas?" Não têm vida para isso, sabe
porquê? Porque se um médico fizer 24 horas praticamente esgota o seu horário de
trabalho e fica livre para acomodar a sua vida privada médica a estes one
shot que dá no hospital.
A minha pergunta mantém-se: ninguém põe cobro a isso?
É uma matéria sobre a qual todos temos de reflectir; nós que estamos na
administração, nós que somos da gestão, mas também os médicos, as suas ordens
profissionais e os sindicatos. Sou defensor do diálogo, dei provas disso quando
estive no governo, não houve um sindicato que não passasse por mim em termos de
negociação, sindicatos de enfermagem, de médicos, de técnicos de diagnóstico e
terapêutica, de farmacêuticos... acredito que os médicos sejam sensíveis a
isso, vão perceber mais tarde ou mais cedo que não podemos estar sempre a
acomodar os vícios, os pequenos interesses. Temos de levar as coisas para o
sítio certo.
As mutualidades podiam ou não aliviar as listas de espera dos hospitais,
como fazem os privados, se o Estado contasse com elas para isso?
Essa matéria é discutível, perigosa. Muitas vezes os hospitais têm
capacidade instalada que não utilizam. Um gestor público o que quer é
rentabilizar o seu serviço e não dá-lo a terceiros, caso contrário o Estado
está a gastar por dois carrinhos: nos custos fixos e nos variáveis, em função
dos doentes que manda para fora. Mas há situações de excepção, e quando estive
no governo fui sensível a isso, e o ministro da Saúde também era sensível a
isso. Essas situações são as de proximidade. Uma misericórdia localizada num
território distante do centro médico ou hospitalar pode fazer alguns
tratamentos, reabilitação ou pequenas cirurgias, evitando que os doentes se
desloquem 60 ou 100 quilómetros. Temos de ter alguma humanidade, e a humanidade
reflecte-se na capacidade de criar respostas mais próximas das pessoas, que
podem ser as misericórdias ou as mutualidades. Mas não podemos transformar isto
numa exigência, porque uma coisa é eu precisar de alguns serviços onde não
tenho o SNS, outra é essas entidades a bater-nos à porta e exigir que se mande
para lá doentes porque fizeram grandes investimentos... Quem é que os
mandou fazer investimentos? Não posso mandar para lá doentes só porque
investiram.
Como seria se um grupo de médicos ameaçasse demitir-se em bloco e o governo
aceitasse essa demissão?
Estas demissões, confesso, deixam-me um pouco perplexo. Algumas vezes as
demissões são estratégias de pressão, que têm como objectivo admitir mais
médicos, receber mais horas de urgência, etc. Este governo já tomou em relação
aos médicos uma série de decisões que lhes são benéficas. Por exemplo, passou a
pagar as horas extraordinárias a 100%, que o governo anterior cortou em 50%.
Segunda nota: há uma disposição na carreira médica que diz que quando o médico
faz uma noite tem direito ao dia seguinte, o chamado descanso compensatório.
Que passou a ser pago, é descontado no tempo de trabalho. Um médico faz 24
horas e apanha uma noite. No dia seguinte tinha, por exemplo, quatro horas de
serviço. Essas horas são riscadas do seu horário, abatidas, mas é considerado
trabalho feito, apesar de ele não ter estado lá.
Há países onde é possível optar por um serviço de saúde público ou por um
serviço privado. Podia aplicar-se em Portugal?
Não sou favorável ao opting out, que dessolidariza os cidadãos.
O problema é que são as classes de rendimentos mais elevados que têm mais
propensão para o opting out, comprar seguros privados, e isso
significa que o seu dinheiro sai dos impostos gerais. A menos que a decisão do
poder político seja a de que quem tem seguros privados deixar de contar com os
serviços de saúde do Estado. Ou, em alternativa, deixa uma parte no Estado, uma
reserva de solidariedade, ou até para doenças catastróficas - de contágio ou
grandes acidentes de viação, porque não há nenhum hospital privado que trate
doentes politraumatizados.
créditos: Pedro Marques / MadreMedia
A questão na saúde, como nos transportes, na educação e noutras áreas é que
o contribuinte não sente que o que gasta em impostos esteja reflectido nos
serviços que o Estado lhe presta. Concorda?
É isso mesmo. Aliás, tenho acompanhado, infelizmente, a questão da CP e, de
facto, falta investimento em serviços de qualidade. Mas é bom – sou defensor
deste governo, como imagina – termos presente o desinvestimento que foi feito
na companhia pelo governo anterior. É claro que este governo está a ver passar
os comboios nesse aspecto concreto, mas o facto é que o grande desinvestimento,
despedimento de pessoal em massa, foi feito pelo governo anterior.
O governo anterior dirá que foi obrigado a tomar essas medidas por causa do
governo que esteve antes de si, não?
Isso é verdade. Por isso é que há quem apele aos consensos e posições
concertadas e de natureza definitiva. Duas ou três notas: com o governo anterior
as despesas de saúde pública caíram em valor absoluto em 2013 mil milhões de
euros – baixaram de 70% para 65%. No mesmo período, as despesas privadas em
saúde subiram 700 milhões de euros. A facturação dos privados entre 2010 e 2017
subiu 68%. Isto são decisões de natureza política, que vieram com a troika, que
queria mesmo era privatizar a saúde, não tenho dúvidas, e criar um Portugal a
duas velocidades. Isso era mau, veja o Brasil: gasta muito pouco em saúde
pública, o que desde logo cria um estigma de natureza social. Em matéria de
saúde gostaria que fossemos todos iguais – posso até admitir que na educação
não - não vejo que o ensino superior universitário tenha de ser gratuito, mas
até ao 12.º ano devia ser obrigatório e pago pelo Estado, quem quiser pode
sempre optar pelo privado, mas paga os impostos na mesma. Se for para o
hospital público empobrecido, as condições clínicas e hoteleiras são piores. No
Brasil os doentes são convidados a trazer medicamentos porque o hospital não
tem para todos. As questão de natureza classista colocam-se aqui, nem os
profissionais gostam de trabalhar num sítio que tem o rótulo "para
pobres", nem é convidativo trabalhar nesses locais.
"AVALIAR AS ADMINISTRAÇÕES DOS HOSPITAIS SEM AVALIAR AQUELES QUE
DETERMINAM A DESPESA HOSPITALAR, QUE SÃO OS SERVIÇOS CLÍNICOS, NÃO É UMA
RESPONSABILIZAÇÃO ADEQUADA"
O primeiro orçamento do Estado deste governo previa a criação de uma
entidade para supervisionar os gastos das administrações. Qual é o papel das
administrações dos hospitais?
Tanto quanto julgo saber, esse trabalho não foi ainda concluído. Claro que
é importante avaliar as administrações dos hospitais, mas avaliar as
administrações dos hospitais sem avaliar aqueles que determinam a despesa
hospitalar, que são os serviços clínicos, não é uma responsabilização adequada.
Trabalhei em hospitais e a minha experiência é a de que muitos médicos, a
grande maioria, valorizavam a eficiência, a boa organização de recursos e
trabalhava-se bem. Mas também estive em hospitais em que era cada um para seu
lado: entravam às horas que queriam, saiam às horas que lhes apetecia, metiam
aos doentes as próteses que queriam e até mandavam os fornecedores
entregá-las no bloco operatório.
A mesma pergunta: a quem compete travar isso?
São as administrações que têm de fazer um esforço, até com a colaboração
das comissões de farmácia e terapêutica, do conselho médico, do director
clínico.
E por que motivo não actuam as administrações?
Porque há um certo temor reverencial em relação à classe médica e uma
dificuldade enorme em entrar em choque ou, pelo menos, em criar desconforto. O
que diz é bem verdade, muitas vezes é preciso criar disciplina interna,
horários e avaliação de desempenho. Se eu avalio as administrações dos
hospitais mas não tenho qualquer vontade de intervir na gestão clínica em
termos de avaliação do desempenho clínico, estou a ser injusto para com quem
estou a avaliar. Exemplo: se for ao [Hospital] Santa Maria, onde ainda por cima
há professores universitários que têm meio tempo no hospital, meio tempo na
universidade, é evidente que o controlo do trabalho médico é muito mais difícil
do que se for, por exemplo, ao litoral alentejano, ao pé de Santiago do Cacém.
Pode dizer-se que Santa Maria tem uma administração mais qualificada, mas há
imponderáveis que não se podem controlar num hospital como Santa Maria e que
tenho obrigação de controlar no litoral alentejano. E depois há toda a
cobertura política em cima disto; ainda sou do tempo em que se fazíamos algum
reparo ao médico professor fulano de tal ou, pelo menos, incomodávamos um
bocadinho a sua forma de estar e de trabalhar, recebíamos um telefonema do
senhor presidente da República ou de alguém do governo a dizer: "Veja lá
isso".
Recebeu telefonemas desses?
Recebi. Tudo isto faz parte. Os poderes e a capacidade de influência são
muito grandes, estamos perante uma corporação profissional prestigiada,
competente. Eu, enquanto utente, familiar de utentes, promotor de doentes, só
tenho a dizer bem. Agora, o poder é tanto que o pequeno gestor que está no
Santa Maria torna-se uma formiguinha, irrelevante.
"QUANDO ACUMULAMOS DÍVIDA E NÃO PAGAMENTOS A TENDÊNCIA DO FORNECEDOR É
SUBIR O PREÇO PARA COMPENSAR O ATRASO NO RECEBIMENTO. OS PREÇOS DA INDÚSTRIA
FARMACÊUTICA E DE DISPOSITIVOS MÉDICOS ESTÃO INFLACIONADOS POR ISSO"
Quais os principais problemas com que se deparou nos hospitais por onde
passou?
Havia sempre problemas de natureza financeira, mas vou citar-lhe um que é
crónico: as dívidas. Mas quero esclarecer uma coisa: outro dia alguém dizia que
não há álcool num determinado hospital. Isso é faits divers. Pode
não haver álcool por falha de alguém, por falta de organização, mas
não é por razões financeiras. Por razões financeiras nunca há falhas. Imagine
que um doente está a tomar o medicamento mais caro que há no mercado, acredita
que esse medicamento vai falhar por falta de dinheiro? Não vai. Como é que se
paga? Logo se vê. E se por algum motivo não tiver o medicamento, peço ao
hospital do lado. Aliás, as farmácias hospitalares estão sempre em contacto
umas com as outras. O problema aqui está na dívida. Quando acumulamos dívida e
não pagamentos a tendência do fornecedor é subir o preço para compensar o
atraso no recebimento. O risco que corremos com a dívida rolante, e estou a
pensar na indústria farmacêutica e na dos dispositivos médicos, é que os preços
estão inflacionados. Há quem diga que a qualidade dos produtos baixa, mas tenho
dúvida de que seja possível; um fornecedor não vai misturar água ao álcool ou
alterar a composição dum medicamento, os produtos são normalizados, não é o
mesmo que vender vinho a copo. Este é um problema que eu tinha em todos os
hospitais por onde passei.
"O PROBLEMA LIGADO AOS HORÁRIOS É QUE OS MÉDICOS SÃO, POR NATUREZA,
PESSOAS POUCO LIGADAS A HORÁRIOS"
E além da dívida?
Tínhamos muitas reclamações de utentes por incumprimento de horários,
atrasos nas consultas, cancelamento de exames ou operações. Não é admissível
que um doente tenha a sua cirurgia marcada, chegue ao hospital e a enfermeira o
mande de volta para casa, onde receberá novo postalinho a dizer quando será a
próxima vez. Isto é desvanecer as expectativas e os compromissos que assumimos.
Os serviços de saúde, como serviços públicos que são, têm de ter um grande
sentido ético de responsabilidade e de compromisso. O problema ligado aos
horários é que os médicos são, por natureza, pessoas pouco ligadas a horários.
Uma vez no Curry Cabral até fiz uma ordem de serviço que dizia assim: "Às
8h30 faca à pele". Isto é, não era o doente entrar no bloco operatório às
8h30, era começar a intervenção. O que pressupunha que às oito horas já o
doente estava a entrar na sala, os preparativos da anestesia todos em
andamento, a equipa devidamente fardada e higienizada. Mas nunca nada disto
funcionou, eram 9h30 e ainda não tínhamos a cirurgia iniciada. Mas se for ao
Hospital da Luz, a engenheira Isabel Vaz vai tolerar este comportamento uma
semana e no final chama o médico e diz-lhe: "O senhor é muito bom,
mas para nós não serve". No Estado não é assim. É o tal problema
do modelo contratual.
"AS FINANÇAS NUNCA DIZEM QUE É DISPENSÁVEL, DIZEM QUE VÃO ESTUDAR. E
QUANDO DIZEM 'VAMOS ESTUDAR' É UMA CHATICE"
A certa altura afirmou que governar nestas condições é um tormento. O que
quis dizer?
Ah! Estava numa conferência sobre medicamentos e explicava que, ao
contrário do que se diz, o que se gasta em medicamentos inovadores é brutal. O
números de doentes tratados em oncologia em Portugal tem tem subido de forma
exponencial. E disse isso: "Como imaginam, é um tormento gerir um
ministério com recursos limitados quando há, por um lado, inovação terapêutica
e, por outro, a pressão dos gastos. Não podemos ter sol na eira e chuva no
nabal. Principalmente quando do lado dos profissionais de saúde não havia
qualquer margem de contemplação. E, sabe, as Finanças nunca dizem que é
dispensável, dizem que vão estudar. E quando dizem "vamos estudar" é
uma chatice.
Como sentiu a sua saída do governo?
Fiquei triste pelas circunstâncias em que ocorreu. A minha saída foi
abrupta. Aliás, nestas coisas não sou nada dado a demoras, pelo contrário. O
que estava em causa era um escândalo de natureza pessoal, nada tinha a ver com
o meu desempenho no governo. E percebi que iam fazer ali um cavalo de batalha
contra mim, ou melhor, contra a senhora, e que me atingia directamente.
Portanto, quanto mais depressa saísse, melhor. No dia seguinte a ter saído fui
ao supermercado com a minha filha e fui insultado por uma senhora. Nessa tarde,
no Estoril, fui à Pastelaria Garrett com a minha mulher e um grupo de amigos,
cerca de 12 pessoas. À saída apareceu um carro com gente a insultar-me:
"Chulo, fdp, andaste a chular a Raríssimas". Atingiu proporções
loucas.
E andou?
Trabalhei para a Raríssimas como consultor durante um período em que estava
em preparação a abertura da Casa dos Marcos, um trabalho importante. Quando a
Casa dos Marcos abriu eu saí. Aliás, no momento em que as dificuldades se
notaram - estiveram quase seis meses sem me pagar, quando eu já tinha passado
recibos às finanças -, eu disse que só queria receber aquilo e não queria
voltar a trabalhar com eles. Mas não me zanguei com ninguém, o problema ali não
foi comigo, foi entre eles. Deixei de trabalhar com a Raríssimas em Fevereiro
de 2014 e entrei no governo em finais de 2015. Nunca mais falei nem com
a Dra. Paula Brito Costa nem com ninguém e deixei de ter contactos
com a Raríssimas. Quando esta coisa rebentou dei uma entrevista à TVI que não
devia ter dado. A jornalista perguntou-me se tinha lá trabalhado e se achava moralmente
certo ter recebido, insinuando que eu devia ter uma responsabilidade nas
finanças da associação, quando não fui contratado para isso. E quando fui ao
Brasil, fui em trabalho, pago pela minha empresa, e coincidiu com a viagem da
Raríssimas. Depois havia de questão de eu ter ou não favorecido a Raríssimas
enquanto membro do governo. E contratei um advogado. Não dei nada à Raríssimas,
zero. Isso para mim seria, do ponto de vista ético, incontornável. E não houve
qualquer processo contra mim. Agora, a saída do governo foi dolorosa, tinha
tarefas nas quais estava empenhado, como as negociações com os sindicatos, e
gostava de ter continuado.
créditos: Pedro Marques / MadreMedia
Julgo saber que é sportinguista convicto?
Sim.
Como olha para as eleições que se aproximam, com tantos candidatos à
presidência?
É mau. Tenho receio, por exemplo, do grupo de indefectíveis de Bruno de
Carvalho. Penso que ele jogou muito com as claques, aquilo implica muito
dinheiro, ele distribui bilhetes gratuitos que as claques depois vendem, há um
subsídio para as claques e alguns vivem daquilo e não vivem com pouco. Sabe
quem vai ganhar as eleições?
Não, quem?
Quase aposto que vai ganhar Frederico Varandas. Foi o primeiro a
apresentar-se e rodeou-se logo de de pessoas com créditos firmados: Eduardo
Barroso, Daniel Sampaio, gente que em determinada altura apoiou Bruno de
Carvalho. Confesso que estava à espera que [José Maria] Ricciardi apresentasse
um projecto e uma equipa mais galvanizadores, mas não vejo nada. Aliás, ou
muito me engano ou Ricciardi está a tentar criar um biombo que o defenda de
algumas coisas que por aí vêm a propósito do BES. Se arranjar esse biombo, a
vitória no Sporting, fica um pouco protegido. Até agora, em relação ao BES, ele
tem escapado pelos pingos da chuva, mas não acredito que esteja livre de ser
chamado à pedra.
Há quanto tempo é sócio do Sporting?
Comecei por ser sócio do Sporting em 1970, ia ao velhinho Estádio de
Alvalade. Depois deixei de viver em Lisboa e só voltei a fazer-me sócio há três
anos, quando o Sporting foi buscar Jorge Jesus. Mas não sou sócio de andar por
lá e nem tenho a paixão para isso. Quando era secretário de Estado ia
aos jogos todos para os quais me convidavam, achava graça e gostava de ir. Eram
simpáticos, embora o Bruno de Carvalho mostrasse sempre uma faceta de louco.
Em que aspecto?
Num jogo com o Benfica, em que estavam o presidente da Assembleia da
República, sportinguista ferrenho, o ministro das Finanças, todo benfiquista, e
eu, o Bruno de Carvalho começa a atirar garrafas de água para a bancada de
baixo e aos pontapés à parede. Estávamos na primeira fila e ele desatava aos
pontapés à parede, pegava na garrafa aos gritos e pumba! O Ferro Rodrigues
ainda olhou para mim: "Este gajo é doido!"
E ninguém lhe disse nada?
Não. O Marta Soares também estava, mas é um senhor, e olhava para mim como
quem diz: "Tem calma." Foi um escândalo, o ministro das Finanças,
completamente maluco com aquilo, pergunta-me: "Mas este gajo é presidente
do Sporting?". Uma coisa indescritível. Noutros jogos em que estive via-o
beber uma coisa que parecia água, mas imagino que fosse gin - ou vodka - bebia
daquilo às carradas. Virava-se para trás, chamava um daqueles empregados que
andam pelo camarote com um sinal, e ele lá vinha. Como é que o Daniel Sampaio,
com o prestígio que tem, manteve o apoio a um tipo evidentemente anormal?! Uma
vez sabe como me cumprimentou? Estendeu a mão, eu estendi-lhe a mão, e diz:
"Ah, meu grande amigo", e pumba, uma marrada nas costas e outra no
cachaço [risos]. E depois fazia muitas festas às pessoas, homens e mulheres,
sempre a fazer festas. Tem ali uma questão de carácter complicada.
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