sexta-feira, 3 de agosto de 2007
A diluição do Hosp. D. Estefânia no Centro Hospitalar "Um processo em contraditório com a Opinião do Corpo Clínico deste Hospital
Chegou-nos as mãos um documento assinado pela Comissão Médica , que precedeu o actual processo de integração no Grupo Hospitalar e cujo conteúdo contraria as medidas actuais, que correspondem objectivamente à eventual destruição do Hospital D. Estefânia, fato que esta a condicionar um ambiente de desanimo e desacordo generalizado.
Hospital Dona Estefânia
Comissão Médica
R. Jacinta Marto 1169-045 Lisboa
Ministério da Saúde
Exmº Senhor Ministro da Saúde
Prof António Correia de Campos
Assunto: Posição dos médicos do Hospital de Dona Estefânia face às questões que lhes foram colocadas em 29 de Março por Sua Exª o Senhor Ministro da Saúde
Na intervenção pública de 29 de Março, afirmou Vossa Exª que, apesar de ter já pré-estudado um conjunto de projectos que incluíam o Hospital de Dona Estefânia, a sua concretização ficaria dependente das opções esclarecidas dos profissionais do Hospital, nomeadamente, a passagem a Entidade Pública Empresarial, a sua integração no Centro Hospitalar de Lisboa-Centro e a eventual inserção num futuro Hospital de Todos os Santos previsto para a próxima década.
Os médicos do Hospital de Dona Estefânia, conscientes das responsabilidades específicas que têm no contexto delineado pelo Senhor Ministro, representados pela sua Comissão Médica e ouvidos sectorialmente, quer nos serviços e unidades quer em reunião alargada de médicos realizada em 2 de Maio, decidiram enviar o presente documento que expressa o consenso unânime dos intervenientes (Actas 3 a 7 da Comissão Médica), o qual pretende responder às questões colocadas por Vossa Exª.
Os médicos conhecem a conjuntura financeira do País e os constrangimentos enunciados pelo Senhor Ministro da Saúde e estão também empenhados na mudança de processos que possa levar a uma maior racionalização da despesa sem prejuízo para os doentes ou para as expectativas básicas do desenvolvimento institucional e dos seus profissionais.
Os médicos do Hospital de Dona Estefânia manifestam-se no âmbito do que consideram ser o seu papel na promoção e protecção do mais elevado interesse público. No caso vertente, este é representado pelo compromisso ético e profissional com a contínua melhoria de cuidados prestados à criança e à mulher e a defesa dos direitos de acessibilidade, equidade e qualidade no atendimento que é legitimo esperar do Serviço Nacional de Saúde.
É importante relembrar que o Hospital de Dona Estefânia, construído num local doado pela Casa Real, é um dos primeiros Hospitais pediátricos na Europa, fundado em 1860 por acção da Rainha Dona Estefânia que se impressionou ao ver crianças tratadas em enfermarias de adultos no antigo Hospital de São José.
O Hospital de Dona Estefânia, actualmente com cerca de 230 camas, é um hospital pediátrico central especializado e de apoio perinatal diferenciado, com um departamento da mulher e da reprodução que inclui uma maternidade de referência e dá corpo ao conceito materno-infantil essencial à missão institucional.
Aqui nasceu a pediatria portuguesa e o ensino da pediatria. Dando continuidade a essa missão, o Hospital continua a ser um hospital com ensino universitário.
O Hospital de Dona Estefânia, como unidade materno-infantil polivalente, é diferente dos serviços de pediatria e dos serviços de obstetrícia inseridos em hospitais gerais. Aqui trabalham mais de três centenas de médicos especializados em praticamente todas as áreas da pediatria e da medicina da mulher, com a metodologia, a preparação, a sensibilidade e as tecnologias desenvolvidas especificamente para estes dois grupos de cidadãos. Aqui se formam e especializam centenas de profissionais nas áreas mais diferenciadas da pediatria e da medicina da mulher.
O Hospital continua a evoluir nas vertentes arquitectónica e funcional e atinge elevados níveis de modernidade e eficiência à medida que se reabilitam os seus espaços e equipamentos.
O Hospital está definitivamente marcado pelo seu ambiente pediátrico, resultado de décadas de aprendizagem numa relação exclusiva e dedicada à criança e ao seu mundo próprio. Aqui tudo tende a ser ajustado e reajustado às necessidades da criança e da família, intuitivo, natural, adequado e humanizado. A instituição adquiriu uma cultura específica e os seus profissionais têm um modo de estar diferente que é continuamente actualizado e transmitido de geração em geração.
O Hospital de Dona Estefânia é um equipamento de saúde que qualifica a cidade e o País e que tem visto reforçado o seu sentido no actual movimento de reconstrução de hospitais pediátricos na Europa e Estados Unidos e na consolidação dos centros materno-infantis numa procura de pólos de assistência mais diferenciada e especializada para doentes cada vez mais complexos ou com patologias emergentes.
O Hospital de Dona Estefânia está profundamente enraizado no subconsciente colectivo como um bem que pertence não só à região e aos seus habitantes, a que as famílias recorrem intuitivamente nos momentos de maior desespero, mas também ao País e a muitas gerações de mães e de doentes que foram crianças e hoje são adultos e idosos.
O Hospital de Dona Estefânia é uma referência cultural e histórica da Cidade e do País.
Assim:
1 – Em relação à questão da “passagem ao regime de Entidade Pública Empresarial”, tratando-se de um assunto de natureza conjuntural, da estrita deliberação política e administrativa do Governo e cujo regime está já definido no DL nº 233/2005 de 29 de Dezembro, os médicos consideram não dever pronunciar-se por a questão estar fora do seu âmbito de decisão.
2 – Quanto à questão de uma “eventual integração no Centro Hospitalar de Lisboa”, os médicos do Hospital de Dona Estefânia entendem que:
a) O Hospital de Dona Estefânia tem uma longa tradição de integração em estruturas de complementaridade, uma vez que faz parte do Grupo Hospitalar “ Hospitais Civis de Lisboa” desde a sua criação em 1913. A sua inclusão neste Grupo, tendo propiciado algumas vantagens, condicionou sérias vicissitudes, em especial nos últimos 20 anos, em grande parte pela natural dificuldade que o hospital de adultos sempre teve na assistência a crianças e grávidas.
A relativa exclusão a que o Grupo votou o Hospital de Dona Estefânia neste período recente, foi assumida como uma oportunidade de procura de outras alternativas consistentes de complementaridade e articulação. Essas alternativas envolveram, por um lado, outras instituições e, por outro, levaram o Hospital a desenvolver internamente soluções de maior diferenciação e especialização dos seus próprios profissionais o que, na área pediátrica, segue as tendências e as indicações das principais confederações europeias.
Progressivamente, o Hospital deixou de contar com a assistência por especialistas de adultos que tinham níveis de prática diversos na criança, para passar a privilegiar a assistência realizada por médicos com formação pediátrica de base e com competências específicas adquiridas através da formação complementar em áreas particulares ou de médicos com formação vertical que se dedicassem quase em exclusivo à criança e cujo acesso aos concursos de provimento requeriam já prova da experiência específica no grupo etário pediátrico. Esta é uma das mais valias que o Hospital pediátrico oferece às crianças que a ele acorrem e que passou a ser definidora dos cuidados especializados prestados.
b) A simples integração administrativa num centro hospitalar, que o Hospital globalmente rejeitou já em 2000 e os médicos continuam a rejeitar, acarreta evidentes prejuízos e riscos e só poderá ter alguns efeitos positivos, muito sectoriais, para a actual assistência aos doentes, se forem acautelados princípios básicos da assistência materno-infantil hospitalar.
Entre os aspectos negativos mais evidentes, refere-se: a redução do acesso da área da criança e da mulher ao centro de decisão que passa a estar muito mais afastado e envolvido nos problemas das múltiplas áreas de adultos; a redução da sensibilidade institucional aos problemas da criança e da mulher; a redução do investimento na diferenciação da área materno-infantil em relação ao todo constituído pelo hospital geral; o desaparecimento de um órgão de administração pediátrica autónoma local, considerado um factor extremamente negativo para estes hospitais; a redução da capacidade de atracção de mecenatos que, no mundo desenvolvido, é uma das formas principais de financiamento complementar dos hospitais materno-infantis e suporte compensatório das suas particulares condições de “facturação” segundo os moldes aplicados aos hospitais de adultos.
c) Uma reorganização meramente administrativa dos hospitais em questão seria incompreensível face aos custos que tal opção acarreta aos mais variados níveis. Não faria qualquer sentido que se associassem, formalmente, hospitais de adultos ao actual hospital materno-infantil e, na prática, continuassem a ser atendidas crianças nesses hospitais de adultos (Ex: Dermatologia, Cardiologia pediátrica, ORL, Estomatologia, Oftalmologia, etc.) numa co-utilização totalmente inadequada de salas de espera, atendimento técnico e enfermarias de internamento que já escandalizava a fundadora do Hospital no século XIX.
Os médicos do Hospital de Dona Estefânia reafirmam que o atendimento de todas as crianças no hospital materno-infantil é um princípio indispensável à credibilidade de qualquer reorganização global de um eventual centro hospitalar que pretenda desenvolver, modernizar e humanizar a sua prestação de cuidados.
d) Do mesmo modo, seria incompreensível a regressão aos tempos de há 30 anos no que respeita à diferenciação em muitos dos serviços de apoio à clínica, nomeadamente Patologia Clínica, Serviços Farmacêuticos e Imagiologia, hoje serviços bem diferenciados nas técnicas, procedimentos e dinâmicas utilizadas na medicina da criança. A eventual integração do Hospital de Dona Estefânia em qualquer outra estrutura administrativa ou regime jurídico nunca poderia subverter a condição diferenciada destes serviços pediátricos conseguida ao longo de muitos anos de formação especifica dos seus quadros, desbaratando-a num processo de “aproveitamento” de profissionais dedicados à medicina de adultos realizando técnicas de adultos, em espaços de adultos e com equipamentos de adultos.
e) Igualmente, não faz sentido que órgãos de aconselhamento técnico materno-infantil se dissolvam (Comissão Médica, Comissão de Ética, Comissão de Humanização, Comissão de Farmácia e Terapêutica, Comissão de Controlo de Infecção e Antibióticos, Comissão de Certificação de Interrupção da Gravidez, etc.) e, por exemplo, os problemas da criança, a que os serviços e profissionais de adultos são globalmente alheios ou menos informados, passem a ser discutidos e decididos em forae maioritariamente compostos por estas últimas estruturas e esses profissionais. Tal constituiria um forte prejuízo para os interesses da criança e da mulher e um retrocesso significativo na causa materno-infantil em Portugal.
Havendo ainda quem pense que um hospital pediátrico é composto apenas por pediatras (à semelhança de um serviço de pediatria de um hospital geral) e que as estruturas referidas de um centro hospitalar podem ter na sua composição um pediatra que assegure a respectiva representação, relembra-se que a realidade do Hospital de Dona Estefânia é a de mais de 30 especialidades, sub-especialidades e valências e muitas dezenas de consultas e núcleos especializados, dos quais a pediatria e os pediatras são apenas um dos elementos.
Em conclusão,só será de encarar a integração com todas as suas consequências e riscos, se esta for objecto de um protocolo de adesão ou afiliação que, entre outros, explicite:
- a salvaguarda de princípios fundamentais que, ainda assim, conduzam a ganhos compensatórios para a assistência aos doentes;
- a manutenção da diferenciação e autonomia técnico-assistencial do Hospital de Dona Estefânia na sua dimensão materno-infantil e com as suas unidades e profissionais diferenciados;
- a manutenção de um quadro de profissionais próprio do Hospital materno-infantil com a necessária especificação no quadro geral do centro hospitalar;
- a afirmação do Hospital como o elemento materno-infantil estruturante do centro hospitalar;
- a garantia da manutenção da sensibilidade e ambiente pediátrico próprios;
- a adequação da politica de atribuição de internos como factor determinante da continuidade do Hospital;
- a garantia de manutenção dos órgãos de gestão e apoio técnico local, nomeadamente as comissões técnicas próprias;
- a garantia da manutenção do apoio ao Hospital nas áreas de investigação;
- a manutenção da vertente de ensino universitário e pós-graduado como eixo de desenvolvimento fundamental do hospital e dos seus profissionais.
3 – Quanto ao “futuro Hospital de Todos os Santos”, programado para um tempo em que já actuaram e serão visíveis resultados de muitas das mudanças que afectam e afectarão a organização do nosso sistema de saúde, a posição actual dos médicos do Hospital de Dona Estefânia é consentânea com os princípios antes enunciados.
Esses princípios só serão cabalmente cumpridos se for adoptado um dos seguintes modelos: a) campus sanitário onde o Hospital de Dona Estefânia figure como elemento materno-infantil autónomo e articulado funcionalmente com o hospital de adultos;
b) alternativamente, através da reformulação progressiva do actual Hospital de Dona Estefânia no local onde sempre existiu e à custa dos terrenos ainda livres. Considera-se que, nesta localização, poderá integrar funcionalmente o campus do Hospital de Todos os Santos, tal como acontece em outras cidades.
Qualquer outra posição, com as informações disponíveis, seria certamente extemporânea.
Receba Vossa Exª os nossos melhores cumprimentos,
Lisboa, 3 de Maio de 2006
A Comissão Médica
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